Una (2017) é baseado na peça Blackbird, de David Harrower. É importante dizer isso de início, porque, ao assistir o longa, muito cedo fica evidente que ele é baseado em uma peça. Duas personagens dividem o palco – em grande parte, somente duas personagens e um cenário. É o bastante para criar um clima de tensão tão intenso que levou pessoas a saírem da sessão na sua estreia no Telluride Film Festival, nos Estados Unidos, e que fez este que vos escreve se contorcer na poltrona do cinema.
Una é também um filme que acontece em dois tempos. Em um plano, a protagonista titular, interpretada por Rooney Mara, vai confrontar um homem de meia-idade chamado Ray (Ben Mendelsohn) em seu local de trabalho. Noutro plano, que se apresenta em cortes secos como memórias invasivas, entende-se o porquê: 15 anos antes, Ray abusou sexualmente de Una, à época ainda pré-adolescente. Ela pensava amá-lo, até se encontrar abandonada num quarto de motel, no dia em que os dois fugiriam juntos para a Europa continental. Um julgamento, uma condenação e mais de uma década mais tarde, uma foto dele estampada no jornal, com sua equipe de trabalho em alguma fábrica, leva Una a encontrá-lo em condições melhores do que esperava: com novo nome, novo emprego, nova identidade, nova esposa, nova vida.
O que se sucede é um conflito longo, honesto e profundamente humano. Mara se entrega a seu papel com total potência e Mendelsohn responde à altura – em um filme tão dependente dos diálogos dos dois, isso é essencial. Eles dançam aos berros, tapas e cuspes, enquanto Una revela a amplitude de formas em que o abuso veio a impactar e moldar sua vida, e Ray tenta justificar o que parece injustificável. Nesse cenário, os momentos de calmaria entre os dois se tornam mais perturbadores do que os de violência: por mais que o espectador queira que Una tenha o desfecho que precisa em sua vida e dê a volta por cima, há muito trauma e sentimentos confusos em jogo; e nesse puxa-e-empurra, ficamos na ponta da poltrona, aguardando a próxima atitude da protagonista.
O que Una traz de novo à peça de Harrower é justamente a capacidade de explicitar a origem do trauma, em flashbacks que pontuam toda a obra. Por um lado, esse recurso é importante para diferenciar o filme do que poderia parecer simplesmente uma peça da Broadway gravada. Por outro, a lente do diretor Benedict Andrews deixa muito pouco à imaginação — não de forma grosseira ou apelativa, mas talvez um tanto desnecessária e óbvia. Quase todos os momentos mencionados pelos protagonistas em seu diálogo têm uma correspondência em flashback. O longa poderia ter se beneficiado de mais confiança na força das palavras e da atuação por si só.
Ainda assim, o clima e tom angustiantes do filme não são nunca abalados, e por vezes são inclusive acentuados pelas interrupções. Além de uma prova da capacidade dos atores envolvidos, isso mostra que Una traz à tona uma discussão que precisa urgentemente acontecer, e joga uma luz ríspida sobre cada ferida aberta pelo abuso (em especial, pelo abuso na juventude). Por mais que seja desconfortável, não podemos desviar o olhar.
Una estreia no Brasil no dia 13 de abril. Assista ao trailer legendado:
https://www.youtube.com/watch?v=UgiN35SC-hM
por Fredy Alexandrakis
fredy.alexandrakis@gmail.com