O Avesso da Pele (2020, Companhia das Letras), do autor Jeferson Tenório, é um retrato altamente doloroso das violências presentes no cotidiano de pessoas negras no Brasil. Com representações fidedignas à realidade e referências teóricas e culturais indispensáveis, o autor consegue explorar uma diversidade de vivências e as diferentes facetas do racismo que atingem cada indivíduo.
O livro consiste na reconstrução das memórias da família de Pedro, um jovem estudante de 22 anos. Após a morte de seu pai em uma violenta abordagem policial, ele busca trilhar os caminhos genealógicos para entender a construção de sua identidade e a de seus pais. A história se desenrola principalmente em Porto Alegre, que serve como ambientação do racismo estrutural que alicerça a narrativa. Nela, as relações entre os personagens são influenciadas pelo espaço hostil e opressor.
A escrita de Tenório é hipnotizante e fornece ao texto um forte caráter didático. Sua habilidade de imergir o leitor em um mundo fictício com temáticas e personagens tão reais é impressionante. Dentre os tópicos explorados, os efeitos psicológicos do racismo nos personagens são muito bem inseridos na história e englobam a ansiedade e a baixa autoestima provocadas por um constante estado de vigilância.
As principais críticas são voltadas a uma branquitude que ora homogeniza e suaviza, ora reforça e instrumentaliza os fatores raciais de acordo com a conveniência. Tanto Henrique quanto Martha, os pais de Pedro, se envolvem em relacionamentos inter-raciais abusivos durante suas vidas. Ambos lidam com a hipersexualização, a atribuição de estereótipos e piadas racistas vindas das famílias de seus cônjuges, que tentam se abster da responsabilização por suas ações com o pretexto de que “o afeto transcende a cor da pele”.
Há também particularidades dos traumas de cada um, como a violência doméstica sofrida por Martha. O autor explora muito bem o acontecimento e faz questão de explicitar as diferentes vivências entre mulheres e homens negros.
Outro tema persistente em boa parte da narrativa é a precariedade do ensino público brasileiro. Henrique foi professor de língua portuguesa e literatura durante 20 anos e sofreu com uma dura rotina de aulas dadas, correções de provas e desrespeito e desinteresse dos alunos. Há também espaço para abordar o autismo e o abuso sexual na infância, ambos parte da história de Henrique.
Em pouco menos de 200 páginas, Jeferson Tenório consegue despertar uma gama inesperada de emoções em seus leitores e abrir uma ferida com cicatrização tardia. O Avesso da Pele machuca e incomoda, mas acima de tudo cria um senso de urgência para o tratamento dos abismos que marcam peles negras.
Perante um Estado que fomenta diariamente um genocídio da população negra, viver torna-se um ato político. E é esse o desfecho de Pedro. Ele caminha pelas ruas de Porto Alegre com o ocutá que simboliza Ogum nas mãos e constrói seu próprio lugar a cada passo, permanecendo.
[Imagem da capa: Reprodução/Twitter/Companhia das Letras]