Por Maria Luiza Negrão (marialuizacnegrao@usp.br)
Há 330 anos era assassinado Zumbi, o líder do quilombo Palmares, uma das maiores comunidades de fugitivos de engenhos na região das capitanias de Pernambuco e da Bahia. Mais de três séculos depois, a data marca o Dia da Consciência Negra no Brasil, o último país da América Latina a abolir a escravidão.
A inclusão da data no calendário oficial brasileiro veio no fim de 2023, por meio da Lei 14.759, assinada pelo presidente Lula. Na ocasião, o senador e autor da proposta, Randolfe Rodrigues (PT-AP), afirmou em suas redes sociais que “o [dia] 20 de novembro será feriado nacional para reforçar em todo o país a luta contra o racismo e a necessidade de reflexão sobre a memória e a resistência do povo preto”.
O Dia da Consciência Negra era comemorado desde 2011 como feriado municipal ou estadual. Mas as primeiras mobilizações em torno da data ocorreram já em 1971. Naquele ano, um grupo de estudantes se reuniu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para pedir que a celebração não ocorresse no dia 13 de maio, que marca a promulgação da Lei Áurea. Tratava-se do Grupo Palmares, um coletivo negro da capital gaúcha.
Antônio Carlos Côrtes, jornalista, advogado, escritor e membro da Academia Rio-Grandense de Letras, foi fundador do coletivo. Em entrevista ao portal g1, ele afirmou que teve a ideia de celebrar o dia 20 de novembro depois de ler um livro sobre a história de Zumbi dos Palmares e só encontrar a data de sua morte, mas não de seu nascimento.
“Quisemos lançar uma semente para reescrever a história do Brasil”, afirmou Côrtes ao g1. “É uma luta para diminuir o fosso da desigualdade social, que começou com nossos ancestrais que chegaram ao Brasil a bordo de campos de concentração flutuantes e encharcaram o solo com suor e sangue”, continuou.
Leis e lutas abolicionistas
Côrtes explicou que a proposta do grupo tinha o objetivo de substituir a celebração da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil. Entre o desembarque do primeiro navio negreiro, por volta da metade do século 16, e a promulgação da medida, em 1888, foram mais de 300 anos de vigência do regime escravagista.

A Lei Áurea, porém, não foi a única medida abolicionista adotada no território brasileiro. No início do século 19, em meio aos reflexos do pensamento iluminista e capitalista, a Inglaterra passou a exercer pressões sobre Portugal para que cessasse o tráfico e a adoção de mão-de-obra escrava no Brasil.
A Lei Feijó, por exemplo, foi assinada em 1831 e “declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos”. Na prática, isso não aconteceu naquele ano e medida não teve qualquer efeito — foi daí, inclusive, que nasceu a expressão “para inglês ver”, no sentido de fazer algo mal feito ou apenas fingir que fez.
Já em 1850 foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, que proibia, de fato, o tráfico de africanos para o Brasil. Depois disso, foram assinadas as leis do Ventre Livre, que libertava os filhos de mulheres escravizadas nascidos depois de 1871, e dos Sexagenários, que libertava pessoas escravizadas com mais de 60 anos, mediante mais três de trabalho, após 1885.
Por fim, em 13 de maio de 1888 foi decretada a Lei Áurea, que concederia a liberdade para todas as pessoas escravizadas em terras brasileiras. No entanto, essa liberdade não foi completamente efetiva. Lúcia Helena Oliveira Silva, docente e coordenadora do Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão (NUPE) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que “após a abolição da escravidão, as pessoas libertas foram desamparadas”.
Lúcia Helena explica que, na época da promulgação da Lei Áurea, terras estavam sendo distribuídas para imigrantes, “mas isso não acontecia nem para os brasileiros e nem tão pouco para os escravizados”. Por isso, segundo ela, parte dos recém-libertos permaneceram nas fazendas, já que não teriam para onde ir.
A professora também explica que a mão de obra utilizada nos mais diversos setores da economia brasileira, por muito tempo, foi a baseada na escravização e no trabalho forçado de pessoas negras. Por esse motivo, “o trabalho em si era considerado coisa de escravizado. As pessoas livres, de modo geral, trabalhavam, mas tinham alguém que fazia o serviço mais pesado”.
Antes das leis abolicionistas, no entanto, a população negra no Brasil já se organizava para lutar contra a escravidão. Entre uma revolta e outra, as comunidades quilombolas surgiram para abrigar escravos fugitivos – uma das maiores foi a comunidade de Palmares, que perdurou ao longo de mais de 100 anos no atual estado de Alagoas. Foi lá onde Zumbi liderou o grupo desde sua juventude até o seu assassinato por tropas enviadas pela Coroa portuguesa.

[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Hoje, no Brasil
Anos depois da abolição da escravidão, impactos da desigualdade racial ainda são sentidos na sociedade brasileira. Segundo dados de uma pesquisa apoiada pelo Ministério da Igualdade Racial, 84% das pessoas negras brasileiras consideram já ter sofrido alguma forma de racismo. A desigualdade também se reflete nos índices de violência contra a mulher — dados do Atlas da Violência de 2025 revelam que 58,5% das vítimas de violência doméstica e intrafamiliar são negras.
“O racismo é uma das estruturas que formam a sociedade brasileira no geral e, portanto, formou a nossa economia, nossas relações sociais e relações familiares. Enfim, tudo que é estrutura social do Brasil.”
Luana Alves, vereadora pela cidade de São Paulo
O racismo também impacta a saúde de pessoas negras. Graduada em psicologia e em saúde coletiva e atenção primária, a vereadora Luana Alves (Psol-SP) explica que a questão vai além de aspectos da biologia humana. “Saúde é um todo. É nosso estar no mundo, é nossa rotina, nosso acesso a direitos, é sua casa e sua alimentação”.
Por isso, Luana conclui que a desigualdade racial é um dos determinantes não só para o acesso a atendimentos médicos, já que “saúde não é a ausência de doenças”. Para ela, o racismo também impede o alcance do “pleno potencial” físico de uma pessoa.
Para a vereadora, uma das formas de combater a desigualdade racial na saúde é aumentar o financiamento da saúde pública, além de capacitar os profissionais e combater o racismo em todas as suas formas. Segundo Luana, suprir Unidades Básicas de Saúde (UBS) em áreas periféricas – onde, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 72% dos moradores são pessoas pretas ou pardas –, é um exemplo de medida para reduzir os impactos da inequidade de raça na saúde.
Em 2021, Luana propôs o Projeto de Lei Escola Sem Racismo, que obriga todos os professores de escolas públicas ou privadas da cidade de São Paulo a receberem capacitação para a promoção da igualdade racial nas unidades em que atuam. A medida foi sancionada dois anos depois, em plenária na Câmara Municipal de São Paulo.
Fora do Poder Legislativo, a educação antirracista também é trabalhada por Mighian Danae Nunes, pedagoga pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e doutora em educação pela Faculdade de Educação (FE) da USP. Para Mighian, “a pedagogia é fundamental para fazer funcionar a educação das relações étnico-raciais que queremos, porque ela é a ciência que faz engrenar as invenções que desejamos fazer acontecer, no interesse de vermos nascer uma sociedade sem racismo”.
“Compreender a educação como uma ferramenta para a participação social é o começo para pensarmos uma pedagogia da diferença, da diferença, do acolhimento e da emancipação.”
Mighian Danae Nunes
Sobre o feriado nacional do Dia da Consciência Negra, Mighian opina que “nada é suficiente para acabar com o racismo, mas é importante termos marcos legais, históricos, datas e memoriais”. Para ela, todas as medidas são importantes e “nenhum direito que já temos – seja o feriado ou os dados sobre pertencimento étnico-racial que estão sendo produzidos por pressão dos movimentos sociais negros – deve ser retirado”.
