“Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos” faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Na maior parte dos documentários-biográficos, o mais difícil é entregar um personagem de múltiplas camadas. Afinal, ninguém é apenas bom ou mau. O maniqueísmo costuma pertencer ao domínio do cinema ficcional. No entanto, o humano prevê contradições. E nesse sentido, Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos (2017) cumpre com a lição. Recontando a trajetória de um dos mais prolíficos diretores do Cinema Marginal brasileiro, o documentarista Mario Abbade captura um Neville criativo e transgressor, mas também egocêntrico, arrogante e misógino. Certamente algumas dessas características podem ser questionadas frente à época (anos 70 e 80) em que o autor viveu. Mas a pergunta que fica é: será que são homens como Neville que queremos ver, mais do que homenageados, defendidos em pleno século XXI?
Se Spielberg foi o pai dos blockbusters americanos, Neville provavelmente foi o dos brasileiros. Filmes como Dama da Lotação (1978), Os Sete Gatinhos (1980) e Rio Babilônia (1982) levaram milhares de pessoas aos cinemas, consagrando nomes hoje famosos, como os de Sônia Braga, Claudia Raia, Regina Casé e Lima Duarte. Suas obras, povoadas por festas nababescas, mulheres nuas e violência gráfica, contrastavam muito com o que a ditadura militar e a moral cristã pregavam. Tanto foi que seus primeiros filmes sequer chegaram a ser lançados. Qualquer um que exibisse um de seus filmes teria não apenas a cópia destruída, como a prisão decretada.
Muito por isso, a palavra “transgressão” foi por bastante associada à sua pessoa. Como muitos dos entrevistados mencionam, Neville abriu portas para uma liberdade sexual e ideológica. Alguns até chegam ao ponto de chamá-lo de feminista. E é aqui onde tudo se torna bem problemático.
Digamos que junto com a imagem de transgressor vinha também a de intransigente. Se algo estivesse em desacordo, Neville não mediria esforços para humilhar e abusar psicologicamente dos supostos responsáveis. Coisa que o próprio documentário não esconde, como quando lembram das vezes em que gritava ou demitia alguém por algum detalhe mal posicionado. O problema é que toda vez que alguém levanta isso, de duas, uma: ou o entrevistado fala com um sorriso nostálgico, ou o depoimento seguinte surge quase que para deslegitimar o ocorrido. Afinal, ele era um homem intelectual, criativo. Os que o questionam é quem são os caretas.
Um dos momentos mais desconfortáveis é quando o documentarista questiona a todos se eles viam Neville como um pervertido. Que tal um depoimento de Regina Casé como resposta? Durante as filmagens de uma cena na piscina de Os Sete Gatinhos, ela comenta que a primeira coisa que Neville a pediu foi que ficasse nua. Embora como acrescente, isso sequer estivesse no roteiro. A motivação para que o fizesse, e que é repetido inúmeras vezes pelos entrevistados: “imagina, vai atuar num filme do Neville e não quer ficar pelada?”
E são nesses momentos que o egocentrismo de Neville mais incomodam. Afinal, como ele se justifica, dois outros grandes nomes do cinema mundial, Pasolini e Fassbinder, também eram pervertidos. E olha que o debate por ele levantado não é entre ser correto ou não separar obra de autor. Não seria surpresa, então, se ele terminasse o discurso dizendo: “se eles podem, eu também”. A questão é que ninguém pode! Ser um diretor renomado não faz de ninguém um Deus que tudo pode. Pelo contrário, eles deveriam ser um exemplo de como agir em vida social. De outro modo, que caiam os ídolos.
A retórica de Neville é, inclusive, bastante problemática, porque é daquela pessoa que tem respostas prontas para tudo que já criou na vida. O que não seria essencialmente um problema, se considerarmos que os autores costumam refletir sobre a própria obra a posteriori. Mas principalmente em debates sociais, o silêncio lhe valeria muito. Num caso como o de Casé, ele responderia não estar fazendo pornografia, mas anarquia. Já quanto à objetificação da mulher, não se tratava do corpo, e sim da alma, da grande atriz por trás dele – o tal “animal cinematográfico”, como teorizaria. Para Neville, tudo é um grande jogo de palavras.
E o filme parece dançar de acordo com essa sopa de letrinhas, visto a série de entrevistados (homens) que concordam e buscam as mais diversas interpretações do significado desses corpos. Desse modo, não adianta dizer que o documentário questiona o machismo de suas obras, se a ideia desde o início fosse justificá-lo. Isso apenas inviabiliza o debate. Uma escolha melhor seria nem tocar no assunto se fosse para tratá-lo de maneira tão superficial e irresponsável.
Em palavras mais francas, muito do que se discute e ri durante os 106 minutos de Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos poderiam hoje ser classificados como assédio. E, tudo bem, pode ser que ele acreditasse de fato em sua retórica. Pode ser que seus abusos fossem toleráveis na década de 70. Mas o que não pode ser é criatividade justificando abusos. Volto ao ponto, será que é esse o homem que mereceria ser documentado em pleno século XXI?
Trailer:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com