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“O Outro Lado do Paraíso”: representatividade no limbo

Imagem: Reprodução / TV Globo O Outro Lado do Paraíso, atual novela do horário nobre da Rede Globo, aproxima-se de sua reta final após longos sete meses de exibição. Desde outubro do ano passado, a obra, com roteiro de Walcyr Carrasco, direção artística de Mauro Mendonça Filho e direção geral de André Felipe Binder, introduziu …

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Imagem: Reprodução / TV Globo

O Outro Lado do Paraíso, atual novela do horário nobre da Rede Globo, aproxima-se de sua reta final após longos sete meses de exibição. Desde outubro do ano passado, a obra, com roteiro de Walcyr Carrasco, direção artística de Mauro Mendonça Filho e direção geral de André Felipe Binder, introduziu à programação global debates muito atuais, como LGBTfobia, racismo, machismo, prostituição, violência contra a mulher e até mesmo violência sexual contra crianças.

Essa quantidade de pautas relacionadas à condição das minorias reflete a pressão exercida sobre a grande mídia para que grupos historicamente marginalizados ocupem esses espaços. A relevância de tal processo é inegável, afinal, todas as pessoas merecem ter representatividade, principalmente em um veículo tão poderoso quanto a Globo. No entanto, questiona-se o modo como tem ocorrido esse movimento, pois, em uma tentativa de abrangência total dos males sociais, a mídia, no caso a novela de Carrasco, acaba por construir discursos superficiais, cujo principal impacto se dá na reiteração de paradigmas e preconceitos.

A reportagem não contemplará alguns aspectos positivos da trama, como a representatividade tocantinense e a abordagem sobre violência sexual contra crianças – desenvolvida de forma sensível e emocionante. É reconhecido, em certa medida, o valor da obra. Entretanto, aqui se propõe uma análise de pontos críticos da narrativa, em especial as abordagens sobre violência contra mulher e homofobia, com o intuito de promover uma reflexão sobre até que ponto é possível esperar da mídia um posicionamento em questões sociais que afligem nosso dia a dia enquanto cidadãos.

Clara e Gael: violência contra a mulher e restituição do agressor

O cenário é Tocantins, dividido entre Pedra Santa, cidade interiorana fictícia, e a capital Palmas. A princípio, Clara (Bianca Bin) é uma menina inocente do interior que mora com seu avô, até que Gael (Sergio Guizé), burguês badboy de Palmas, em cima de sua moto, avista a garota (em uma versão tocantinense de Berta) nos campos de capim-dourado. Surge assim o grande casal da primeira parte da trama. Eles se apaixonam, casam-se e aparentam felicidade plena até que, na lua de mel, Clara é vítima de um estupro violento pelo marido. As cenas foram fortes e comoventes, causando polêmica nas redes sociais logo nesse estágio da novela. No dia seguinte ao ato criminoso, Gael se desculpou e a mulher aceitou, com a crença de que a violência não seria repetida. Mas foi. Clara foi agredida por mais duas ou três vezes, inclusive quando estava grávida. Foi atirada no abajur e para baixo da escada, mas mentia no hospital e sempre acreditava nos contos do agressor, até que finalmente resolveu se separar.

Desespero de Clara (Bianca Bin) na lua de mel revela o começo de um relacionamento abusivo. (Reprodução / TV Globo)

Para Júlia Fagundes, membro do Coletivo Feminista da Escola de Comunicações e Artes da USP e representante discente da Comissão de Direitos Humanos da ECA, conteúdos desse tipo são essenciais dentro de uma mídia que atinge tantas pessoas: “Muita gente assiste novela, então se elas se basearem apenas na fantasia, nos romances, e não apresentarem fatos atuais – sejam ligados a crimes, assédio sexual, violência de gênero etc. – a obra continua se mostrando uma ilusão”. Por outro lado, segundo a estudante, “a narrativa que se constrói a partir de cada tema tem uma influência gigante no que se pensa sobre esses temas”; logo, é necessário cautela ao tratar de assuntos tão espinhosos, o que não fez o autor.

Na segunda parte da trama, passam-se dez anos e Clara, que sofreu por uma armação da ex-sogra, tenta recuperar a guarda perdida de seu filho. A partir daí, o agressor Gael começa uma jornada de redenção para recuperar o amor da mãe de seu filho: busca auxílio psicológico, mas não se adapta ao tratamento; aborda insistentemente a ex-mulher, mas ela o dispensa. Até que Walcyr Carrasco resolve substituir o apoio de profissionais especializados por uma vidente, D. Mercedes (Fernanda Montenegro). Ela revela a presença de um “demônio” dentro do homem, o que justificaria os surtos de ciúmes e raiva, e o fato de o rapaz ser “bom e gentil, só tem que enfrentar o demônio”. Mais tarde, após uma sessão semelhante a um exorcismo, a senhora descobre que Gael é violento com Clara e outras mulheres porque havia sido espancado por sua mãe durante a infância.

Processo religioso pelo qual a terapia profissional foi substituída. Gael (Sergio Guizé) e D. Mercedes (Fernanda Montenegro). (Reprodução / TV Globo)

Júlia considera problemático o fato do caso de agressão à mulher ser apresentado com essa causa: “Tratar de elementos capazes de ajudar uma pessoa a ter um comportamento agressivo é válido, existem doenças desse tipo, mas isso inibe o ‘cara’ da culpa.”

Em um país onde 503 mulheres são violentadas a cada hora (Datafolha sobre o ano de 2016), é impossível que a maioria dos casos seja por conta de agressores com problemas psicológicos graves, por isso, torna-se prejudicial abordar a violência pelo espectro patológico. Essa não é a causa mais comum, afinal, o que legitima a violência é uma estruturada cultura do estupro capaz de naturalizar esses atos ao colocá-los como “instinto do macho”. Dessa forma, a novela mostra sua incoerência e irresponsabilidade social. Ademais, mostra-se responsável pelo reforço de padrões culturais machistas, como o de que o agressor é necessariamente um doente, enquanto na verdade pode ser qualquer homem inserido na sociedade atual.

LGBTs na TV; estereótipos ainda em voga

Em outro núcleo de O Outro Lado do Paraíso, ascende-se o debate acerca da homofobia. No começo da trama, o médico Samuel (Eriberto Leão) era atormentado diariamente por sua mãe, uma senhora que se indignava com o fato de o filho estar solteiro aos 35-40 anos. Para agradar a mãe, o homem namora e se casa com a enfermeira Suzana (Ellen Rocche), por quem não possui nenhuma atração sexual.

Ao longo da narrativa, Samuel tenta de tudo para que consiga transar com a moça, chegando até a tomar veneno de cascavel como “remédio” à homossexualidade. Em paralelo, o médico tem encontros sexuais com o motorista Cido – cenas que contêm certa comicidade embora muito raramente expressem o sofrimento interno de Samuel em se aceitar. Além disso, esses momentos são acompanhados de uma “feminização” da figura de Samuel, com o intuito de promover o riso no público por meio da ridicularização do personagem, que veste, por exemplo, calcinhas (enquanto a trilha é sempre Pabllo Vittar).

Para agravar a situação, Samuel consegue finalmente se separar de Suzana e vencer, ainda que forçadamente, seus medos. Porém, a mulher se junta à mãe do ex-marido e consegue reconquistá-lo, casando-se novamente, o que seria impensável numa situação realista; e, no fim, acaba por descredibilizar o movimento LGBT, por apresentar a ideia de que a homossexualidade é reparável, se houver comprometimento na tentativa.

Suzana (Ellen Rocche) quando flagra seu marido (Eriberto Leão) em performance sensual para Cido (Rafael Zulu). Samuel não beijou Cido nem uma vez, suas cenas juntos eram sempre mostradas dessa forma “proibida”, sexual e ridicularizada. (Reprodução / TV Globo)

Tal maneira de tratar a homoafetividade não se mostra nada atual, à medida que essa pauta social está presente superficialmente, processo evidente também no salão de beleza da novela: há dois gays afeminados que competem pelo personagem de Felipe Titto, uma figura heteronormativa considerada galã. Nesse núcleo, novamente as figuras homossexuais agem em função do alívio cômico da trama; fazem piadas, falam de um jeito “engraçado”, trocam farpas desnecessárias e quase nunca são aprofundadas enquanto pessoas do segmento LGBT que possuem inseguranças, medos e uma vida além de tiradas básicas e fofocas. À proporção que uma complexa comunidade tem sua representação reduzida a papéis tão vazios na televisão brasileira, estereótipos são reiterados e torna-se difícil esperar mudanças na realidade brutal vivida pelos grupos marginalizados.

Marcel (Andy Gerker) e Nicácio (Fábio Lago) disputam por Odair (Felipe Titto) em núcleo cômico. (Reprodução / TV Globo)

Ao observar a maneira como assuntos de tamanha importância são tratados, parece que nada se evoluiu desde o século passado quanto à representatividade no meio televisivo. Talvez esse anacronismo se deva ao descompromisso da mídia em desestabilizar os padrões sociais. Portanto, apesar de em certos momentos a novela ter acertado ao promover reflexões sobre, por exemplo, relacionamento abusivo, O Outro Lado do Paraíso reafirmou padrões sociais quando se perdeu nas discussões propostas.

O autor certamente se afogou na quantidade de problemáticas, mas, de volta à militante Júlia Fagundes, trata-se de um movimento de apropriação midiática dos temas em pauta hoje em dia, de modo a reestruturá-los de acordo com uma narrativa conveniente aos grupos dominantes. “O conteúdo que está sendo requerido ultimamente é mostrado, mas sem provocar uma reflexão profunda, sem conscientizar, para que esteja no imaginário do público conservador, mas também satisfaça o público progressista, de forma que esse não questione. [Os dirigentes das emissoras] Querem que tudo permaneça como está, porque é o que lhes interessa.”, completa ela.

Por Raul Garcia
raulgarcia@usp.br

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