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O negro, a sociedade e as novelas

O bandido, o garçom, a babá…nos acostumamos em ver atrizes e atores negros ocupando esses papéis nas novelas. Galã, empresário, médico? Só se você for branco, loiro e dos olhos azuis. O Brasil é o maior produtor mundial do gênero novelístico, suas obras são distribuídas e conhecidas em vários países. Entretanto, o modelo de sociedade …

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O bandido, o garçom, a babá…nos acostumamos em ver atrizes e atores negros ocupando esses papéis nas novelas. Galã, empresário, médico? Só se você for branco, loiro e dos olhos azuis. O Brasil é o maior produtor mundial do gênero novelístico, suas obras são distribuídas e conhecidas em vários países. Entretanto, o modelo de sociedade brasileira construído ao longo dos anos pelas telenovelas é um tanto problemático.

Pra começar, muitas vezes, a “realidade” retratada nas telas era – e ainda é – muito diferente da vida da maioria dos telespectadores. As tramas geralmente giram em torno de uma elite, mostrando – e ao mesmo tempo exaltando – seus hábitos e estilo de vida, que são totalmente opostos ao da maioria dos telespectadores que, geralmente, ainda pertencem as classes mais baixas. O problema é que, no “comportamento” dessa elite estão presentes seus valores. Nesse pacote estão inclusos conservadorismo, preconceitos e racismo, heranças históricas não apenas da elite, mas do Brasil como um todo.

Dessa forma, não apenas como um personagem secundário, o negro é sempre o “errado”, o exemplo a não ser seguido, o ridicularizado, o humilhado. Ele é colocado como elemento de diversão para os brancos, e não para si mesmo e seu grupo. Sua cultura é vista como folclore. O racismo presente no cotidiano do povo negro na sociedade é reproduzido pela tevê e nela encontra um meio para ser perpetuada.

Como era no início

O blakcface é uma técnica de maquiagem teatral, na qual pessoas brancas se pintam de negras para imitá-las de forma caricata, estereotipando-as com o objetivo de fazer piadas. Imagem: Divulgação

A produção novelística nacional teve início na década de 1950. Nos seus primeiros anos, praticamente não havia atores negros nas tramas. Em 1964, a obra O direito de nascer tinha uma atriz negra entre os principais personagens. Porém, naquela época era muito comum a prática do blackface na televisão.

Em Escrava Isaura (1976), a escrava em questão era uma mulher branca, interpretada pela atriz Lucélia Santos (imagem). Isso acontecia porque, na história, ela era filha de um negro com uma branca e por isso tinha como destino a escravidão. Imagem: Divulgação

Quando tentavam abordar a temática da escravidão, as telenovelas distorciam a realidade, passando a ideia de que a abolição da escravatura foi um feito dos brancos. Nessa época também era muito comum os negros atuarem em situações de total subalternidade, sendo a mulher constantemente colocada no papel de escrava ou empregada, o que era algo totalmente contraditório já que as mesmas novelas, na época, tentavam confirmar o mito da democracia racial brasileira e da convivência pacífica entre as raças.

O protagonismo negro

No ano de 1969, a novela A Cabana do Pai Tomás foi a primeira a possuir uma protagonista negra, a qual era a atriz Ruth de Souza. Entretanto, ao mesmo tempo, a novela praticava o blackface, com um personagem branco “se passando” por um negro. Apenas em 1996, com Xica da Silva, tivemos novamente uma protagonista negra. Exibida pela extinta Rede Manchete, a trama era baseada em fatos reais e se passava no Brasil Colônia. A história girava em torno de Xica, uma escrava que escandalizou a sociedade de sua época por ter se tornado rainha. A personagem era interpretada por Taís Araújo. Oito anos mais tarde, em 2004, a mesma atriz voltou a protagonizar uma telenovela, “Da cor do Pecado”, a qual foi a primeira novela da Rede Globo a ter uma protagonista negra.

A família de Paco (Reynaldo Gianecchini) não aceitava seu relacionamento com Preta (Taís Araújo). Imagem: Divulgação

Embora envolvesse os tradicionais clichês novelísticos, mesmo que de forma superficial, a história abordava a questão racial, já que destacava a discriminação e humilhação sofrida por Preta, a protagonista, e seu filho quando mudaram-se para o Rio de Janeiro em busca da família do pai do garoto. O pai, que os familiares achavam estar morto, era um homem branco, rico e herdeiro de uma grande fortuna. O fato de ele ter um filho com uma mulher negra incomodava Barbara, mulher branca e rica que também tinha um filho com o rapaz. Inúmeras foram as cenas de racismo por parte de Barbara tanto com Preta quanto com seu filho. As atitudes racistas das personagens eram tanto explícitas quanto veladas, nos mesmos moldes como ocorre no cotidiano brasileiro.

As novelas de Manoel Carlos são famosas por terem como protagonista uma mulher de nome Helena. Taís Araújo foi a primeira Helena negra. Imagem: Divulgação

Em 2009, a novela Viver a Vida, escrita por Manoel Carlos, trazia uma história um tanto paradoxal. Ao mesmo tempo em que tinha uma protagonista negra, Helena – também interpretada por Taís Araújo – que era uma modelo, rica e bem sucedida , também tinha como personagens secundários um casal negro que vivia na favela, em que o homem era um marginal envolvido com drogas e que, curiosamente, estava presente em praticamente todos os atos criminosos que ocorriam na trama. Pra piorar a situação, ainda nessa mesma novela, em um dos capítulos, a personagem Helena em um pedido de perdão, decorrente de um fato da história, ajoelhou-se perante a personagem Tereza, uma mulher branca.

Embora tenha sido uma única cena, de poucos minutos, quando analisada e problematizada, é possível perceber que simbolicamente ela traz consigo um significado muito maior. Ela sutilmente ilustra a histórica submissão imposta ao povo negro pelos brancos. Como se isso não bastasse, a atuação de Taís recebeu centenas de críticas negativas tanto pela imprensa quanto pelo público em geral, comprovando que o racismo (que está sim por trás dessas críticas) não está apenas no plano fictício. Quando um negro começa a ocupar espaços até então ocupados apenas por brancos há um desconforto pois, na cabeça de muitos, isso não está certo.

Mas existem exceções…

Alguns autores, como Gilberto Braga, tentam ousar e fugir do olhar do senso comum. Conhecido por ter produzido clássicos da teledramaturgia brasileira como Dancing Days (1978) e Vale Tudo (1988), em suas tramas, Gilberto sempre toca nos assuntos considerados tabus para a sociedade.

André Gurgel era um personagem negro fora dos esteriótipos. Imagem: Divulgação

Em Insensato Coração (2011), o ator Lázzaro Ramos, que é negro, interpretava um personagem que não era um garçom, um motorista ou um criminoso, mas sim um designer renomado, rico e bem sucedido, indo totalmente contra a costumeira retratação estereotipada do negro pela televisão.

Regina levava uma vida parecida com a de muitas mulheres brasileiras. Imagem: Divulgação

Já em Babilônia (2015) a discussão em torno da questão racial se dava de maneira mais intensa e profunda, sem rodeios, permeando toda a obra, com cenas que problematizavam e questionavam atitudes e comportamentos comuns presentes no cotidiano que possuem um fundamento racista. A trama ainda ia além, discutindo o papel da mulher negra na sociedade.

Interpretada por Camila Pitanga, Regina era uma mulher negra que vivia no morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, que engravidou após se relacionar com um homem branco casado, tendo que criar a filha sozinha, já que o rapaz não assumiu a criança. Pra isso, teve que adiar o sonho de cursar uma faculdade, tendo que trabalhar para conseguir ter uma vida digna ao lado da filha. Regina é uma mulher como outras milhões de brasileiras. Mães solteiras, que vivem nos morros, que além de lidar com machismo e racismo, têm que driblar a violência rotineira das favelas.

Paula representava uma nova geração de mulheres negras e periféricas que, diferentemente de seus pais, tiveram acesso ao ensino superior através de ações afirmativas de inclusão e assim conseguiram mudar suas vidas. Imagem: Divulgação

Na contramão, há Paula, interpretada por Sheron Menezes, que também é negra e também vem do morro. Entretanto, Paula faz parte da geração que conseguiu mudar sua história. Ingressou numa faculdade através do programa de cotas e tornou-se uma advogada de prestígio. Também é uma mulher empoderada e ciente do seu papel como negra. Ambas as personagens fogem do esteriótipo da mulher negra hiperssexualizada que é valorizada por seus atributos físicos.

Em uma das cenas mais marcantes, Paula termina seu relacionamento após uma série de comentários e atitudes racistas e preconceituosas vindas do parceiro. Na discussão, que tinha como tema o ex-namorado negro de Paula, o rapaz diz: ”Mudou de namorado. Passou do favelado pro surfista e agora tá comigo, engenheiro, olhão azul!” Paula ficou abismada e questionou se ele se achava melhor que alguém por ter olho azul. ”Nem tô falando disso, gata, tô falando mais de condição social, nível cultural, entende?” Paula se irritou e disse o quão racista foi a fala do então namorado que rebateu com uma velha desculpa usada para justificar atos racistas: “Como posso ser racista se tô com uma morena linda como você” Paula o interrompeu na hora respondendo: “Morena não, NEGRA!”

Em outro momento da trama é mostrado o primeiro contato com o racismo pela filha de Regina. A mulher se comove e discute com o namorado a situação e como crianças negras são vítimas de comentários racistas.

Como se podia esperar, a novela recebeu inúmeras críticas negativas, registrando baixíssimos índices de audiência. Além da questão racial, a novela também abordava e discutia a homossexualidade, mostrando um casal de idosas lésbicas.

Num país como o Brasil, onde as telenovelas possuem uma força tão grande que acabam sendo responsáveis por criar e propagar modelos de identidade que servirão de referência para o cidadão, é fundamental que nelas haja não apenas personagens negros não estereotipados, mas também a discussão racial como um todo.

Por Igor Soares

digorsoares@gmail.com

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