“O Processo” faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Para todO Mecanismo (2018) lançado, a esquerda responderá com um O Processo (2018). Para cada “sangria estancada” colocada na voz de Lula, a esquerda responderá com o áudio original de Romero Jucá. Para cada panelaço, a esquerda responderá com um “volta Dilma”. Maria Augusta Ramos, documentarista experiente no mundo político-jurídico, já se embrenhou por histórias de cárcere em filmes como Justiça (2004) e Juízo (2008). Em 2018, ela talvez enfrente o maior desafio de sua carreira ao recontar os episódios que antecederam o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Tal como Aquarius (2015) sofrera anteriormente, O Processo com certeza será boicotado em dobro.
Abrindo com uma tomada aérea sobre a Esplanada dos Ministérios, vemos os dois polos ideológicos separados por um muro e preparados quase que para um confronto no Coliseu. De fato, quem se digladia são os deputados na votação da Câmara pelo afastamento da presidenta. Aos que ficam do lado de fora, o que lhes sobra é literalmente torcer, vibrar e cantar, como se o fizessem para o clube de futebol de paixão. Ao fim dos votos, os amarelos urram e os vermelhos permanecem em silêncio. E sob os cantos do hino nacional, a câmera sobrevoa o desapontamento destes últimos. Corte para o preto.
Se até aqui não sabíamos para qual lado a diretora joga, os protagonistas de seu filme deixam isso bem claro: José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias. Respectivamente, advogado-geral da União, senadora pelo Paraná e atual presidente do PT, e senador pelo Rio de Janeiro. Pelas próximas duas horas, com exceção de algumas informações escritas na tela, toda a narrativa será desenvolvida através das defesas que esse trio orquestra para provar a inocência da presidenta e a inconstitucionalidade do impeachment.
Tudo na vida é político. O simples ato de regar as plantas, por exemplo, carrega toda uma logística de distribuição de água, de gastos com a purificação, e uma série de outras coisas. Assim, defender uma ideologia é político. Parecer não defender nenhuma também é. Que defendamos uma então: foi golpe!
Em retrospecto, se posto no papel, o processo é simples e claro. Na época, investigado pelo Conselho de Ética por dinheiro ilícito no exterior, Eduardo Cunha entra com o pedido de impeachment após Dilma se pronunciar dizendo que seria favorável à cassação do mandato dele. As acusações contra a presidenta: a edição de três decretos de suplementação que supostamente aumentariam o teto de gastos da União, e as pedaladas fiscais, que seriam os atrasos voluntários dos pagamentos de empréstimos feitos com bancos. Segundo a acusação, isso ofuscaria uma dívida enorme que nunca seria contabilizada na balança fiscal da União.
Os argumentos aqui são complicados, mas muito esclarecedores. Quanto aos decretos, a alteração diz respeito aos gastos de um setor em específico, e não da meta fiscal como um todo. Em outras palavras, se é expedido um acréscimo ao que inicialmente se gastaria, por exemplo, com o ramo agrário, outro setor terá seu teto de gastos reduzido para compensar e manter o orçamento geral da União de acordo com o definido. Já com relação às pedaladas, o contra-argumento principal era de que o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão responsável por verificar a legalidade das operações fiscais do país, não interpretava essa ação como ilícita até 2015. Quando uma nova decisão foi emitida, dizendo que a União não poderia ficar devedora dos bancos públicos, o governo aboliu o mecanismo e entrou nos conformes da lei. Sendo assim, não existe crime, porque não se pode punir em retroação. Primeiro porque é inconstitucional e, segundo, porque se assim fosse, diversos outros políticos, como FHC ou Geraldo Alckmin, também seriam enquadrados pelo mesmo, visto que as pedaladas eram um exercício comum e legal na política.
Mas se tudo era tão claro assim, como foi possível destituir uma presidenta eleita democraticamente por mais de 50 milhões de votos? Uma possível resposta vem da mídia. Atendendo aos interesses de uma elite, o “grande” jornalismo foi parcial na forma como noticiou os casos de corrupção. Na maioria dos casos, toda vez que alguém ligado ao PT era acusado, a manchete que se dava não era “pessoa x é corrupta”, mas sim “deputado do PT é corrupto”. Basta uma rápida garimpada, e ainda hoje é possível encontrar esse estratagema. Numa sociedade que só lê manchetes, o inconsciente coletivo passava a vincular todo e qualquer crime a quem levasse a alcunha de “PT”.
Isso sem contar quando as “notícias” difundidas eram falsas. Um dos principais braços do “Fora Dilma”, por exemplo, o dito Movimento (apartidário) Brasil Livre, se alimentava de matérias fabricadas pelo que descobrimos serem parceiros do grupo. Inclusive, no mês passado, um destes colaboradores teve a página do Facebook deletada após divulgar fake news sobre a vereadora assassinada Marielle Franco. Nesses casos, os mecanismos da lei até garantem o direito de resposta do injuriado. O problema é que com a pulverização da internet, dificilmente todos os que receberam a primeira manchete receberão também a segunda. Disso, o que fica na população é a sensação de impunidade e de corrupção generalizada.
Por tudo isso, talvez a fala mais esclarecedora de O Processo seja quando José Eduardo Cardozo rebate o argumento de um dos senadores favoráveis ao impeachment. Parafraseando: “não se deve culpabilizar Dilma por um conjunto da destruição, mas sim tipificar crimes”. O que ele quer dizer com isso é que não basta você desgostar da gestão de alguém para prendê-la: isso é discussão para época de eleição. É preciso, pelo contrário, que ela tenha ferido a lei.
Uma outra possível causa desse cenário são as decisões tomadas pelo próprio PT. Como reflete em determinado momento do documentário, Gleisi comenta que não só Dilma não tinha apoio no Congresso, como muitas das lutas foram travadas de maneira bastante conservadora ‒ só lembrar que uma das principais vozes, na época, a favor do impeachment foi Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Dilma indicado por Lula para o cargo. O resultado dos erros da presidenta, por um lado, insatisfez seu eleitorado, mas por outro também não conseguiu arrebanhar os economistas. Afinal, pelo menos na teoria, o partido representava renovações sócio-políticas. O que, como Gleisi admite nessa cena, não era verdade. Ainda assim, ela entende que não se pode jogar na política ingenuamente e, por isso, ela explicita nesse discurso o que precisava ser vendido: a resistência ao establishment; pelo menos, mais a aparência do que de fato a ação.
É claro que devemos sempre nos questionar se os depoimentos que entram no corte final não são, de alguma forma, articulados pensando que uma câmera os estaria gravando. Mas de fato, o filme defende um ponto de vista, e não esconde isso. Por isso, é louvável que o resultado traga autorreflexões como essas. Infelizmente, em outros casos, essa parcialidade não é de todo bem-vinda.
Para um filme que se propõe a ser uma justificativa racional da ilegalidade do impeachment, é uma pena que pouco entendamos dos procedimentos jurídicos (acima explicados) que nos levaram a tal. Para quem entra sem saber o que são pedaladas e decretos suplementários, pouco se explicará o que são, muito menos o por quê eles não procederiam. Obviamente, a abordagem de Cinema Direto, sem entrevistas e com menor intromissão possível, torna a narrativa das falas mais intrincada. Por isso, acabamos, infelizmente, tomando o discurso mais pela emoção da retórica do que pelos argumentos em si. Sem dúvidas, José Eduardo Cardozo é um orador invejável, e muitas de suas falas são bastante ponderadas. O problema é que para um “público de manchetes” que já se dispôs a investir seu tempo assistindo ao filme, dificilmente ele mudará de opinião. Da mesma forma, alguém que concorde com o golpe, mas não saiba explicar o motivo, não é daqui que tirará sua argumentação.
Um outro problema dessa parcialidade pode ser resumida na caracterização que a diretora faz de Janaína Paschoal, autora do pedido de impeachment: não existe modo mais fácil de desmoralizar o argumento do opositor do que pela chacota. Em palavras mais francas, ela parece uma palhaça. O que de fato é, se assistirmos a alguns de seus pronunciamentos no Senado em que argumenta que “Deus iniciou o impeachment”. A questão é que aqui, além desses momentos, o filme gasta tempo para capturá-la bebendo um Toddynho, ou mesmo dando uma aula sobre aborto que nada tem a ver com a cena anterior e posterior do que estávamos vendo até então. Esses dois momentos, que também se estendem, por exemplo, a interrupção da fala de um senador para arrumar o alarme quebrado, existem apenas para rirmos dos personagens do outro lado.
Réplica do que muito já foi feito contra Dilma, e seus famosos vídeos sobre “estocar o vento” e “saudar a mandioca”. Nenhum problema se este não fosse um filme que, mais uma vez, se pretendesse a justificar racionalmente a inocência da ex-presidenta. Talvez, tal como O Mecanismo, faltasse deixar passar um pouco o calor do momento para que a mensagem pudesse ser mais bem articulada. Do contrário, a sensação que fica é a de um filme cujo potencial é sabotado pela vontade mais de se fazer ser ouvido do que de fato falar o que precisava ser escutado. Uma pena, porque o processo continua a todo vapor e cada vez mais forte.
Trailer:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com