Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Filmes biográficos são difíceis de desempenhar, uma vez que quase sempre há uma variedade de olhares e percepções a respeito da vida que se retrata, algo muito mais presente quando a pessoa que é retratada não está mais viva. El Inca (2016), além de contemplar essa ideia, a potencializa. Candidato da Venezuela para uma vaga de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar, é carregado não apenas pelo seu conteúdo mas por uma exibição mais controversa do que talvez o próprio longa.
Assim que foi lançado em seu país de origem, no final do ano passado, foi instantaneamente um sucesso de bilheteria, chegando a ser o terceiro filme mais assistido do ano no país. Esse fenômeno se deu essencialmente pelo tema: o filme relata a vida de Edwin Valero, venezuelano bicampeão de boxe que se tornou um sucesso internacional ao ganhar todas suas 27 lutas profissionais e estabelecer um recorde de 18 vitórias consecutivas por nocaute, quase todas no primeiro no round. Claramente, o sucesso repercutiu com intensidade em seu país, sendo enaltecido por suas conquistas. Em 2010, o lutador cometeu suicídio, após uma série de problemas pessoais que culminaram com sua prisão após confessar o assassinato da esposa, Jennifer Viera.
Controverso pelos fatos que o rodeiam, o contexto foi resgatado e amplificado quando o filme estreou em 2016, dividindo opiniões no país. A família do lutador solicitou a retirada do filme das salas de cinema, sob a justificativa de proteger os filhos de Valero, hoje com 12 e 14 anos: “Não estamos de acordo com que pessoas alheias à família façam um filme apenas porque eles gostam”, disse o irmão de Edwin, Edward Valero. O Tribunal Supremo de Justiça aceitou o pedido e retirou a fita das salas. Por outro lado, o diretor do filme, Ignacio Castillo Cottin, defende que a justificativa para que essas ações fossem tomadas é muito maior, destacando ”o medo, que parte de um desconhecimento”.
Outro contexto que aparece é o grande apoio que Edwin recebeu do ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, no auge da sua carreira, e como o próprio lutador se demonstrou um grande apoiador das políticas e do governo dele. À época de sua morte, o presidente chegou a se manifestar: “Torna-se necessário sublinhar a canalha midiática que havia cercado O Inca há meses. Nunca lhe foi perdoada sua identificação com a Revolução Bolivariana. Havia que destruir, a qualquer custo, quem havia se tornado um símbolo”.
Independente da visão tomada em relação à sua censura, o filme parece se ater muito mais às questões pessoais do lutador, já que os momentos políticos são pouquíssimos e irrelevantes para o decorrer da história. Isso, no mínimo, demonstra o peso do contexto político numa sociedade como a da Venezuela: seja pelo medo de abordar questões políticas por receio da repercussão ou a simples intenção de omiti-las pela saturação do assunto no país. A intenção de provocar politicamente é ausente, ao mesmo tempo em que os retratos da influência da política na vida do próprio lutador são inexistentes.
O longa transita rapidamente pela escalada profissional de Edwin, – com pouco tempo de diferença entre sua juventude e a vida adulta – acelerando para o momento de auge na carreira. O destaque é dado mais à relação amorosa com a namorada da adolescência e eventual esposa, e os desdobramentos da carreira durante seu desenvolvimento, como afirma o próprio Castillo. “É uma história sobre adolescentes que se apaixonam e sofrem uma violência intrafamiliar gigantesca com um trágico fim. Algo não muito raro na Venezuela”.
De fato, há uma preocupação muito maior em mostrar a “pessoa” Edwin Valero do que a figura enigmática de “El Inca”. O enfoque maior dado ao lutador como profissional está na sua destreza no ringue – principalmente em sequências de luta em câmera lenta que ajudam a dramatizar essa escalada mas que não produzem um grande efeito de sentido. Mesmo nessas cenas, a influência da namorada fica evidente e presente como uma grande parte de sua vida, contribuindo para dar um tom mais pessoal a ela.
Possivelmente, por ter uma história mais conhecida e por possuir como alvo um público prioritariamente nacional, a consolidação profissional de Edwin é difusa. Mais tempo é dedicado à sua queda e, dessa forma, o filme aborda diversos aspectos que os tornam mais aparentes e que o aproximam de histórias de outros esportistas famosos no mundo. A diferença, no entanto, é a sua clara referência local, com sutilezas do dia-a-dia do lutador que ajudam a entender suas experiências futuras. A estética tem sucesso para dar clareza à localidade, e são os detalhes dessa ambientação que tornam o filme mais atraente: sejam as referências à vida passada de garçom em um restaurante ou a mesa de um jantar em sua casa numa região pobre do interior da Venezuela.
Nada é muito explicado no desenvolver da história, e também não há uma conclusão precisa, talvez de maneira intencional. O que fica claro é a mudança psicológica da personagem e a sua desestabilização emocional, que começa a repercutir nos outros próximos a ele. Porém, a abordagem permanece relativamente rasa e unidimensional. A questão do abuso doméstico, por exemplo não é explorada e aprofundada, e não se apresentam pontos de diálogo entre o protagonista e aqueles que estão à sua volta. É como se os atos fossem ocorrendo sucessivamente com uma certa passividade por parte dos envolvidos, inclusive do próprio Edwin.
A mais afetada pela falta de ação é a própria namorada de Valero, caracterizada e construída com um teor extremamente superficial, em que o traço mais marcado da “Negra” (como era chamada pelo lutador) é a fixação pela compra de sapatos. Possivelmente uma tentativa de crítica à maneira como a vida de um casal jovem e rico era construída, mas que acaba mais por transmitir uma ideia de alguém essencialmente fútil do que traçar uma crítica efetiva. A personagem chega a intervir mais próximo do fim, de uma forma sutil e principalmente em um papel de mãe, mas de forma tardia, perdendo-se no contexto maior da história.
Um ponto de maior introspecção ocorre também nas cenas finais, em que há uma leve evidência da possível dinâmica interna vivenciada pelo lutador em seus últimos momentos de vida, mas que permanece esparsa e parece ter um teor apelativo – é pouco frutífera e perde-se nos flashbacks que deveriam auxiliá-la.
O filme ganha sutileza quando aborda situações dos relacionamentos de Edwin, principalmente em um triângulo amoroso que bagunça sua vida. Apesar de dar uma ideia de futilidade, o uso da fixação em sapatos da namorada se torna interessante ao introduzir a personagem da amante de Edwin. Apesar de pouco trabalhadas em diálogos, certas cenas são exaltadas pelo uso da câmera, como a utilização do reflexo de espelhos, em uma loja de sapatos, para visualizar as personagens ou a alternância entre pés e rosto das mulheres e um plano mais geral da loja, criando um efeito visual dinâmico.
Elementos sutis como o foco nos sapatos ajudam a provocar um efeito de sentido maior e com mais sucesso do que as interações entre as personagens. O mesmo ocorre com certas cenas que revelam o aprofundamento psicológico de Valero, em que o uso de cortes rápidos e com muita movimentação parecem dar uma entrada para o que se passa na cabeça do lutador.
Apesar de certa superficialidade ao explorar muitos elementos da vida de Valero, o filme tem sucesso em representar a ideia geral da sua trajetória de vida, apontando sua ascensão pelo reconhecimento e as mudanças elementares ao longo dos anos. Além disso, o destaque para o apelo visual por vezes substitui outras abordagens e ajuda a sustentar melhor seu desenvolvimento. Talvez por ser uma história com vários contextos de adversidade, seria esperado uma maior introspecção para o pensamento de Valero. Por outro lado, a complexidade de olhares para sua vida, inclusive após sua morte, tornam esse trabalho mais difícil de executar.
Confira o trailer com legendas em inglês:
por Daniel Medina
danieltmedina@gmail.com