por Bianca Kirkrlewski
biancakirklewski@gmail.com
Este filme faz parte da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para conferir a programação completa clique aqui
Desaprendemos a olhar para cima. A silhueta curvada se tornou a nova padronização da postura universal. Presos, os olhares não conseguem mais se desviar das luzes que saem da palma de nossas mãos. Quando muito, observamos o chão, mas com a visão em piloto automático, e a mente perdida em pensamentos egocêntricos. Seria necessário se desapegar de tudo e viver da invisibilidade e do vazio (inclusive estomacal) para vencer o peso que acorrenta nossos pescoços e finalmente poder enxergar os céus e arranha-céus da grande metrópole? Essa pode ser uma das múltiplas propostas de Fome (2015), novo filme em preto-e-branco de Cristiano Burlan.
No longa, acompanhamos (literalmente) o andar de Jean-Claude Bernardet. Sem rumo, o crítico de cinema e professor universitário aposentado abandona sua vida, levando e se deixando ser levado por um carrinho de mercado. E mesmo sendo vencido pela cegueira, olha para cima, admirando a conquista de se desamarrar do mundo. E dança nas noites da rua, com a leveza emprestada pelas correntes de ar que saem das grades do chão acima do metrô.
As mesmas calçadas da cidade são pisadas por uma estudante que busca alguma história inspiradora qualquer proferida da boca de algum morador de rua qualquer. Seu objetivo é compor um trabalho escolar relevante para atingir boas notas. É numa dessas explorações solitárias que a jovem encontra o andarilho francês, que a trata de forma fria: é como se ele reconhecesse o egoísmo da ação da moça de demonstrar interesse pela história de um desconhecido, trazendo luz passageira a sua imperceptibilidade, com o único propósito de conseguir proveito próprio.
Fome causa incômodo. O ritmo lento do filme e da existência de Jean-Claude promovem apreensão no espectador pós-moderno que se sustenta no tempo e em seu desperdício. E as atitudes do morador de rua colocam em cheque um posicionamento social comum: o de acreditar estar fazendo uma boa ação (com o intuito de alimentar o ego) dando restos de comida àquele que não a pediu. A recusa do alimento choca o ‘rico’, que despreza ser rejeitado pelo ‘pobre’. Talvez a chamada fome nos atormente de forma inusitada… Estaríamos nós desnutridos espiritualmente, e necessitando a escassez?
Entrevista com Henrique Zanoni, ator de Fome
Foi numa tarde nublada que o ator Henrique Zanoni recebeu a reportagem do Cinéfilos em sua casa, para uma conversa irreverente sobre Fome. Além de interpretar o papel, nas palavras dele, de “um personagem bem acessório”, Zanoni também ficou responsável pela produção do longa. Confira alguns trechos do depoimento:
O filme
Fome veio meio daí: há um tempo atrás o Cris [Cristiano Burlan] tinha me falado ‘Ah, tem esse livro aí, o “Fome”, de Knut Hamsun. Eu li, e fui atrás de um livro do George Orwell que tem os diários dele como mendigo em Londres. A partir disso a gente começa a conversar, e o Cris “viaja” e convida o Jean-Claude. Ele topa, e fomos fazer sem dinheiro, em uma semana. Arranjamos um equipamento que dava condição pra fazermos isso e gravamos.
O roteiro
Nós partimos de um negócio que é muito mais uma atmosfera, então nunca tem um roteiro escrito ou um personagem claro. Fazemos a dramaturgia filmica do próprio ato, e depois acontece uma reflexão de coisas que aparecem, que esperávamos e que não. Então é nesse sentido que eu digo: não tem uma coisa super padrão, organizadinha, careta. Mas ao mesmo tempo não é uma coisa solta. Improvisar, para o ator, é um negócio muito difícil. Então nós criamos esse fundo. E eu já trabalhei muito com o Cris, a gente criou um jeito de trabalhar. O roteiro é essa coisa, essa loucura.
O Jean-Claude adora filmar assim. Ele é um velho loucão, adora quebrar tudo, combina muito com isso. Ele é meio performer. Naquela cena em que ele está no meio dos prédios, nas estacas, estávamos voltando de uma outra cena, fomos ali, demos 50 “paus” para o guardinha, e entramos nesse aterro gigante. E o Jean-Claude não via nada, e se tacava em tudo. Ele é muito doidão filmando.
Gravações em casa
A cena da entrada e a cena do banho do Jean-Claude foram gravadas aqui [em sua casa]. A gente usa o que é possível, né? Isso tem muito a ver com o jeito de produzir os filmes, que é meio sufoco. Fizemos o filme com 15.000 reais. Essa grana é gasta em transporte e alimentação. Todo mundo trabalha de graça. Fazemos em seis dias porque gasta menos. Semana de gravação é um caos total, tem que ficar acordado 20 horas por dia. É muito cansativo e você não passa impune. Mas é o que nós sabemos fazer e o que fazemos da vida.
Assista ao trailer: