“Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.”
2014 foi um ano de muitas perdas. Em novembro faleceu Manoel de Barros, o menino poeta das palavras inocentes. Que escreveu poemas (ou melhor, “inutensílios”, como ele mesmo falava) com a singelidade de menino e delicadeza de borboleta. Há quem acredite que ele está apenas procurando lagartixas no fundo do quintal ou inventando um novo significado para a poesia.
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu no dia de 19 de dezembro de 1916, em Cuiabá, mas com apenas um ano de idade mudou-se para Corumbá, onde sua família construiu uma fazenda no Pantanal. Essa sua infância cercada de natureza mais tarde ganharia uma importância simbólica em suas obras.
Quando tinha 8 anos, mudou-se para Campo Grande, para estudar em um colégio interno. Ele, que não gostava muito da escola, se encantou pela poesia de Antônio Vieira, e pela simbologia de suas palavras.
“A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança”
Manoel de Barros sobre a poesia de Antônio Vieira
Escreveu seu primeiro livro com 19 anos, mas o original foi confiscado por policiais. Quando jovem, Manoel se identificava com as ideias marxistas e, num ímpeto de juventude, pichou uma estátua da cidade com os dizeres “Viva o comunismo!”. Quando os policiais foram à pensão em que ele morava para prendê-lo, a dona mostrou a eles que o jovem havia escrito um livro chamado “Nossa Senhora de Minha Escuridão”. Em troca do original e único exemplar, os policiais deixaram Manoel de Barros ir embora. Alguns anos depois, escreveu outro livro, “Poemas concebidos sem pecado”, com uma tiragem de 20 livros apenas para seus amigos.
Em 1945, Manoel se decepcionou com o discurso de seu líder Luiz Carlos Prestes, que depois de solto declarava apoio ao presidente Getúlio Vargas. Rompeu com o partido e mudou-se para Bolívia, depois para o Peru, até que foi morar definitivamente em Nova Iorque, e fez cursos sobre cinema e pintura – esses cursos influenciaram o caráter imagético e colorido de sua poesia.
Anos depois, voltou ao Brasil e continuou escrevendo, mas sua obra ainda não era muito conhecida, já que ele não fazia muita questão em divulgá-la. Surpreso com uma poesia tão bonita, nos anos 80, Millôr Fernandes começou a colocar as obras de Manoel nas colunas dos jornais em que escrevia, e foi seguido por outros intelectuais. Assim, a obra de Manoel começou a se tornar reconhecida no meio literário, e hoje ele é considerado um dos maiores poetas brasileiros.
Manoel publicou mais de 30 livros, e “O livro sobre nada” é sua obra mais conhecida. Ganhou mais de 13 prêmios, incluindo o Prêmio Jabuti pelas obras “O guardados de águas”, em 1989, e “O fazedor de amanhecer”, em 2002.
Voar fora da Asa
“Escrevo o idioleto manoelês archaico (idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas). Preciso atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável que o solene” (Livro sobre Nada, 1996).
Manoel vai costurando as palavras e atribuindo a elas e à realidade um novo significado. Não é mais uma enseada, mas uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa. Não é uma torneira, mas poesia jorrando. São combinações que ninguém mais pensaria em fazer, e de modo tão singelo e bonito. Sua poesia é além das palavras.
https://www.youtube.com/watch?v=kmZELayEs_g#t=59
Sua obra apresenta muitas características do pós-modernismo, mas também da oralidade brasileira e do vanguardismo europeu. O tema principal é sua própria vida e a natureza. Mas é sempre um relato inventado, todo fruto de sua imaginação. Como ele mesmo disse: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira.”
Inspirado nessa vida imaginada, em 2008 o diretor Pedro Cezar criou o documentário: “Só dez por cento é mentira”, que tem a intenção de contar a “desbiografia” do escritor, a sua vida através das suas obras.
Outra iniciativa interessante foi a do cantor e compositor Márcio Camillo, que musicou poesias do Manoel, lançando em 2012 o disco “Crianceiras”. Em 2007 ele pediu permissão ao poeta, que no início não entendeu muito a intenção do cantor, mas depois ficou feliz por ver a obra pronta e elegeu “Sombra Boa” como uma de suas músicas preferidas. Do CD, surgiu o musical homônimo, sob direção de Luiz André Cherubini, que conta com dança, música, vídeo e animações em 3D. O Projeto Escola Crianceiras oferece aos alunos de Campo Grande que são da Educação Infantil e Ensino Fundamental a oportunidade de assistir ao espetáculo.
Manoel faleceu esse ano, no dia 13 de novembro, com 97 anos, em Campo Grande. Em uma entrevista para a Cult em 2010, disse que gostaria de ser lembrado como um ser abençoado pela inocência, que tentou mudar a feição da poesia. Disso ele pode ter certeza! Com seu eterno olhar de menino, Manoel contou e encantou. Ultrapassou a realidade das coisas e das palavras e nos mostrou uma natureza pintada de magia. Mudou não só a feição da poesia, mas de toda a pessoa que a lê.
Um abraço para Manoel
Dizem que entre nós
há oceanos e terras com peso de distância.
Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.
Contra essa distância
tu me deste uma sabedora desgeografia
e engravidando palavra africana
tornei-me tão vizinho
que ganhei intimidades
com a barriga do teu chão brasileiro.
E é sempre o mesmo chão,
a mesma poeira nos versos,
a mesma peneira separando os grãos,
a mesma infância nos devolvendo a palavra
a mesma palavra devolvendo a infância.
E assim,
sem lonjura,
na mesma água
riscaremos a palavra
que incendeia a nuvem.
MIA COUTO
19-12-2013
Por Isadora Vitti
vittidora95@gmail.com