Jornalismo Júnior

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Séculos após a colonização, indígenas latino-americanos ainda resistem a silenciamento, exclusão e negligência

Entenda os desafios históricos que comunidades originárias da América Latina enfrentam e a importância de seu reconhecimento e proteção
Colagem com imagens de pessoas indígenas e um mapa da América Latina com o Brasil destacado
Por Carolina Passos (anacarolinapassos@usp.br)

A América Latina abriga, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 45 milhões de pessoas que se identificam como indígenas. De acordo com especialistas, esses povos continuam enfrentando diversos desafios, como a aculturação por meio da evangelização, o preconceito difundido pela sociedade e os obstáculos para a demarcação de terras. 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, o professor de história indígena da Universidade de São Paulo (USP)  Gustavo Velloso, aponta que medidas de evangelização em aldeias muitas vezes são realizadas em uma dinâmica “cada vez mais combativa, impositiva de certos valores, com ideias de demonização das culturas indígenas”. 

O especialista explica que a imagem marginalizada dos indígenas é muito forte na sociedade, pois é uma herança de um discurso fomentado quando o tráfico de escravos africanos começou a ganhar força. Esse discurso reforçava um imaginário de que os indígenas eram os maus trabalhadores, enquanto os africanos eram os bons. Segundo Velloso, o início dessa narrativa surgiu “como uma forma de justificar aquela submissão, uma forma de justificar aquela troca em alguns espaços. Em espaços em que não houve transição, os indígenas continuaram sendo uma força de trabalho fundamental.”

Em outros países da América Latina, a escravidão indígena foi a base da atividade econômica, ao contrário do Brasil que, por muito tempo, utilizou, de maneira massiva, a mão de obra escrava negra. De acordo com Fabiano Almeida Matos, no artigo “O Trabalho Indígena na América Latina Colonial: Escravidão e Servidão Coletiva”, “o mais decisivo para o sucesso dessas práticas em território hispânico foi o fato de que lá, os índios já estavam acostumados ao trabalho compulsório empregado principalmente pelos grandes impérios incas, maias e astecas.” 

A influência de diferentes formações históricas

Velloso explica também que o processo de formação histórica do Brasil, em relação a outras nações latino-americanas, foi diferente. Ele aponta que existiram dois processos históricos principais que justificam a diferença quanto à valorização dos povos originários.

O primeiro foi que, em um contexto de independência, existia a necessidade de moldar uma identidade e memória nacional, então algumas nações latino-americanas incorporaram elementos indígenas em suas identidades nacionais. O Brasil não o fez na mesma medida devido ao seu diferente contexto demográfico e histórico, em que a quantidade de comunidades indígenas existentes era muito menor do que nos países vizinhos.

O segundo processo, que começou na década de 1970 e ganhou força na década de 1990, envolve a fortificação de movimentos indígenas e o surgimento de uma nova onda de ativismo pelos direitos indígenas em toda a América Latina, levando a um maior reconhecimento das culturas e identidades indígenas em muitos países. O especialista afirma, no entanto, que a menor taxa de autodeclarados indígenas no Brasil, em comparação a outros países latino-americanos, como Bolívia e Equador, é uma razão demográfica pela qual o Estado brasileiro não tem sido pressionado pelos movimentos sociais a adotar o mesmo nível de reconhecimento das nações indígenas.

Gustavo Velloso afirma que “as diferenças e semelhanças entre o lugar e a dimensão da questão indígena no Brasil e em alguns outros países da América Latina podem ser explicados em grande parte por esses dois processos históricos: percursos demográficos díspares e condições distintas de formação dos estados nacionais”.

“Não podemos esquecer que o Brasil é parte da América Latina”

Gustavo Velloso, professor de história indígena da USP

Imagem de um agente do IBGE conversando com dois indígenas na natureza
Enquanto o Brasil possui 0,83% da população autodeclarada indígena, países como Bolívia e Guatemala contam com 62,2% e 41% da população local, respectivamente, reconhecendo-se como indígena
[Imagem: Jéssica Cândido/Agência IBGE Notícias]

O idioma como agente de valorização de um povo

Em países como Bolívia, Peru e Paraguai, não apenas as línguas indígenas são faladas pela população, como foram consideradas idiomas oficiais das nações para além do espanhol.

Imagem de duas bandeiras do paraguai ao vento
70% da população do Paraguai fala ativamente o guarani [Imagem: Reprodução/Unsplash]

De acordo com o professor de linguística da USP, Thomas Finbow, existem três fatores que implicam na importância da preservação de línguas indígenas:

  • A língua como marcador de identidade: a linguagem faz parte da auto identificação e da conexão com a herança cultural de cada um. Por exemplo, a importância do português para os brasileiros, por situá-los em relação aos outros países da América Latina. 
  • A língua como repositório de conhecimento: as línguas existem há séculos e são maneiras de enxergar e interpretar determinados ambientes e realidades. O pesquisador aponta, ainda, que, às vezes, é muito difícil traduzir exatamente de uma língua para outra língua, então determinados aspectos desse conhecimento são perdidos. “As línguas indígenas são repositórios importantíssimos de conhecimentos milenares sobre a América.” 
  • A língua como coesão grupal: manter uma forte identidade grupal, muitas vezes facilitada pela língua, contribui para a preservação do próprio grupo e de sua coesão social. Isso pode ter consequências positivas para a preservação ambiental, como evidenciado pela preservação relativamente melhor das florestas em territórios indígenas. Segundo o especialista, a língua é um elemento-chave na conexão entre os povos indígenas e seu meio ambiente.
Imagem de um campo verde com montanhas e céu azul
De acordo com o MapBiomas, em 30 anos os indígenas só perderam 1% da sua área de vegetação nativa, enquanto em espaços privados a perda foi de 20,6% por desmatamento
[Imagem: Roberto Cruz/Acervo Funai]

Finbow aponta que o status oficial de algumas línguas indígenas na América Latina é, em parte, uma forma de resistência contra influências europeias, representando uma valorização de características locais em detrimento de elementos culturais europeus. No entanto, ele também afirma que essa relação é complexa, já que nem todas as línguas indígenas hoje existentes estão livres de influências europeias. 

O pesquisador enfatiza que muitos idiomas pertencentes a povos ancestrais latino-americanos foram perdidos, sendo substituídos por novas línguas que surgiram em um período de colonização, como o guarani no Paraguai, ou até mesmo como foi o caso do nheengatu, na região Amazônica. A imposição de uma língua geral para a população foi uma estratégia utilizada pelos colonizadores para conseguir uma maior comunicação com os povos indígenas.

De acordo com o especialista, essas línguas não deixam de possuir origem indígena, mas “se tornaram o veículo do processo colonial”. O que faz com que esses povos não falem ou tenham alguma lembrança sobre a sua língua ancestral.

“Nem todas as línguas indígenas são espalhadas ou vêm do resultado de um processo ancestral de transmissão. Algumas são línguas que substituíram as línguas ancestrais.”

Thomas Finbow, professor de linguística da USP

Segundo dados do site Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA), antes da chegada dos portugueses ao território brasileiro existiam aproximadamente mil línguas indígenas. Hoje, são pouco mais de 160 línguas no Brasil, e nenhuma já foi ou é considerada oficial nacionalmente. 

Finbow explica que isso ocorre por um motivo histórico, considerando a falta de um idioma indígena utilizado majoritariamente pela população, o que dificulta a identificação de uma única língua oficial. Ele também afirma que propor uma língua indígena como oficial pode acarretar problemas, como a criação de uma hierarquização entre a cultura de um povo em relação a de um outro. 

O pesquisador aponta que a melhor maneira de resolver esse problema seria a declaração de línguas cooficiais, de âmbito municipal, baseado no número de falantes. Porém, o professor enfatiza que, apesar da importância dessa medida, o povo que será valorizado não será o ancestral, pois a língua sofreu diversas mudanças com o tempo e a que é falada hoje em dia não reflete no povo que vivia ali durante a colonização. Ou seja, nem sempre é uma medida que exerce uma real resistência, funcionando apenas como um reparo para os atuais falantes.

“No Paraguai, o guarani é um marcador muito forte da identidade da população paraguaia, mas não da população indígena. A grande maioria dos falantes de guarani no Paraguai não se identificam como indígenas.”

Thomas Finbow, professor de linguística da USP

A insegurança e os desafios dos indígenas brasileiros

Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Censo Indígena 2022, existem quase 1,7 milhões de indígenas brasileiros, correspondendo a 0,83% da população. De acordo com o ISA, existem 278 povos indígenas no Brasil hoje. Porém, mesmo com seus direitos garantidos pela Constituição de 1988, muitos continuam enfrentando desafios em relação à sua proteção.

 “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Art. 231 da Constituição de 1988

Em entrevista à Jornalismo Júnior, a pesquisadora Isabela Otsuki, do Instituto Socioambiental, menciona alguns pontos que devem ser considerados para a valorização desses povos.

Um deles é a relação que populações indígenas possuem com a terra em que vivem, sendo fundamentais para “manutenção dos seus modos de vida e do bem viver de suas comunidades”, diz Isabela. 

Outro ponto a ser considerado é que, diante de crises climáticas, a proteção de povos indígenas pode ser importante para a preservação do meio ambiente no Brasil. Segundo o relatório Desmatamento em Terras Indígenas, publicado pelo ISA no início de 2025, no bioma Mata Atlântica, um dos mais desmatados no Brasil, há uma relação positiva entre a demarcação de terras indígenas (TIs) e a regeneração florestal.

Yasmim Chan, também do Instituto Socioambiental, explica que o motivo de existir uma resistência da população e do governo na proteção de comunidades indígenas está relacionado à história do Brasil. “Um processo contínuo de colonialismo que promoveu séculos de violação de seus direitos fundamentais”, explica Yasmim. 

A pesquisadora afirma que, durante o período de colonização, os portugueses invadiram terras indígenas, exploraram seus recursos, os escravizaram e os catequizaram forçadamente, enquanto usavam como justificativa a ideia de que essas comunidades eram inferiores. Para ela, essa imagem montada há séculos continua sendo reforçada politicamente e difundida pela sociedade, de maneira com que os indígenas são vistos por muitos e, até mesmo pelo Estado, como não merecedores de direitos.

“É justamente por isso que tantos setores resistem a essa valorização: reconhecer o direito à terra é também reconhecer que o projeto colonial de ocupação e exploração do território brasileiro precisa ser revisto.”

Yasmim Chan, pesquisadora do Instituto Socioambiental

A especialista aponta, ainda, que interesses econômicos, como mineração e agronegócio, exercem grande influência para que seja dificultada a garantia de direitos para comunidades indígenas, como a demarcação e a proteção.

Segundo o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo.”, a exploração ilegal em territórios de comunidades indígenas também pode ser prejudicial à saúde, à segurança e à sobrevivência daquele povo. A presença armada dos garimpeiros ilegais, além de explorações sexuais e ameaças, coíbe as pessoas de reagirem, como apontado no documento. Ela também degrada postos de saúde locais, impossibilitando o tratamento de doenças e dificulta a soberania alimentar daquela sociedade.

O caso da crise humanitária que afetou o povo Yanomami, em 2023, é um exemplo das implicações dessas atividades ilegais, em que muitos integrantes da comunidade enfrentaram doenças respiratórias, um surto de malária e desnutrição. Segundo o Ministério da Saúde, 363 pessoas Yanomamis morreram até dezembro de 2023 por complicações decorrentes dessas enfermidades. Conforme o relatório, esses indíviduos entram em constante contato com o mercúrio liberado pelo garimpo ilegal, que é prejudicial à saúde. No entanto, as medidas ainda não são totalmente eficazes para controlar esse cenário.

Imagem de um trator em uma floresta
Entre 2023 e 2024, 4.219 hectares de floresta tropical foram destruídos por garimpeiros nas terras indígenas Yanomami, Munduruku, Kayapó e Sararéi [Imagem: Divulgação/Gov.br]

A defesa dos modos de vida dos povos indígenas no Brasil enfrenta diversos desafios, mas o principal está relacionado à questão de demarcação de TIs. Segundo o ISA, existem 809 terras indígenas em diferentes fases do procedimento demarcatório, enquanto 518 estão homologadas ou reservadas. De acordo com Isabela, apesar do reconhecimento da importância do território para os modos de vida dessas comunidades, muitos desses processos de demarcação demoram décadas para serem concluídos.

Ela aponta também que as comunidades indígenas lidam  com ameaças e invasões de garimpeiros, posseiros, fazendeiros e madeireiros. “Isso representa também um desafio para a manutenção dos modos de vida dos povos indígenas, já que não dispõem de seu território e não raramente são colocados em situações de risco e violência”, conclui Isabela. 

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