Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Observatório | Sob protestos das comunidades indígenas, marco temporal é aprovado na Câmara dos Deputados

A proposta que limita a demarcação de terras indígenas tem sido debatida há mais de 15 anos e representa retrocessos nos direitos conquistados pelos povos originários

No último dia 30, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 490/2007, de autoria do ex-deputado Homero Pereira (PSD-MT). O projeto de lei determina que devem ser demarcadas apenas terras indígenas já ocupadas ou em disputa em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Com 283 votos a favor, 155 contra e 1 abstenção, o texto-base segue para votação entre os senadores e passa a ser discutido como PL 2903/2023.

Durante a sessão dirigida por Arthur Lira (PP-AL), parlamentares de origem indígena e aliados manifestaram sua indignação com a tese em votação. Comunidades de povos originários acompanharam o movimento e organizaram passeatas em diversas cidades do país. 

Em Brasília, os manifestantes caminharam pela Esplanada dos Ministérios até o Congresso Nacional e, em um ato simbólico, cobriram uma bandeira do Brasil com tinta vermelha para representar o sangue indígena que está sendo derramado no país. Em São Paulo, os indígenas Guarani bloquearam o km 20 da Rodovia dos Bandeirantes, em Jaraguá, na Zona Norte. No Rio de Janeiro, houve protestos na Avenida Rio Branco, localizada no Centro da capital e em frente à Casa do Índio, na Ilha do Governador. 

Na votação da Câmara, todos os deputados dos partidos PT, PSOL e PCdoB foram contrários ao marco temporal. Do PL, apenas o deputado Antonio Carlos Rodrigues negou a proposta. A maioria dos parlamentares de partidos aliados ao centro e com representantes no governo Lula, como MDB, PSD e União Brasil, votaram a favor da tese, em oposição ao Palácio do Planalto.

A sessão entre os deputados foi marcada por manifestações de ambos lados [Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados]

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, garantiu que a votação na casa legislativa terá mais espaço para discussão do mérito do projeto, sem tramitação em regime de urgência como ocorreu na Câmara. 

Julgamento do STF

Nesta quarta-feira (07), a pauta do marco temporal entrou em julgamento no Supremo Tribunal Federal para tratar sobre a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, demarcada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2003. Uma parte do território, habitado pelos povos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani, está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina que afirma que o local não era ocupado na data de promulgação da Constituição. A votação do recurso foi adiada a pedido do ministro André Mendonça por pedido de vista, após voto de Alexandre de Moraes contrário à tese. Por enquanto, apenas mais dois ministros do Supremo votaram o caso: o relator Edson Fachin, contrário ao PL 490/07, e Nunes Marques, com voto a favor do marco temporal.

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, Eloy Terena, nomeado este ano como secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, informa que a votação se trata de um recurso extraordinário, interposto pela Funai. Essa modalidade de recurso é utilizada para questionar uma decisão proferida por um tribunal inferior que supostamente viola dispositivos constitucionais. “O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), no ano de 2009. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual o processo chegou ao Supremo por via do recurso extraordinário”, explica.

O resultado da votação poderá determinar o posicionamento do STF sobre a validade jurídica do marco temporal no país, o que influenciará mais de 80 casos parecidos e mais de 300 processos de demarcação pendentes. No ano de 2019, o STF deu ao processo o status de “repercussão geral”, essa decisão estabelece uma diretriz que deve ser seguida pelo governo federal e por todas as instâncias judiciais do país em relação aos procedimentos de demarcação. Logo, a tramitação no Senado do PL que contém a tese do marco temporal será afetada caso o judiciário considere o argumento inconstitucional. 

O que está em jogo

Segundo o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) Maurício Terena, o território é um direito fundamental e, na ausência deste, a existência dos povos indígenas se torna inviável. “Isso [marco temporal] causa uma extrema insegurança jurídica para a existência desses povos, ao ter os seus territórios vilipendiados, há uma incerteza imensa sobre a continuidade de suas existências e de suas culturas”, explica. 

Maurício Terena mediando debate sobre a Justiça Eleitoral e a cidadania dos povos indígenas, a convite do TSE [Imagem: Divulgação/TSE]

Além de modificar os critérios de demarcação de terras, a proposta em debate também permite que a União retome terras indígenas em caso de alteração de traços culturais da comunidade e direcione essas terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária. O projeto beneficia apenas os interesses dos setores do agronegócio ao proibir a ampliação de terras já demarcadas e possibilitar a validação de títulos de propriedade ou posses particulares nessas áreas. Ao flexibilizar o uso exclusivo de terras pelas comunidades, permitindo atividades econômicas com não indígenas, o projeto também afeta a relação ancestral de proteção dos indígenas com a natureza. Outra grande mudança, autorizada pelo projeto de lei, seria a criação de empreendimentos e cultivo de transgênicos.

Com a justificativa de “intermediar ação estatal de utilidade pública”, o programa facilita o contato com povos isolados. A interação com essa população isolada vai de encontro a política de não contato utilizada pela Funai, que propõe respeito à autonomia dos povos. Também implica uma inconstitucionalidade, pois alteraria a lógica de existência dessas pessoas. O artigo 231 da Constituição Federal reconhece “a organização social, os hábitos, os costumes, as tradições e as diferenças culturais dos povos indígenas, assegurando-lhes o direito de manter sua cultura, identidade e modo de ser, colocando-se como dever do Estado brasileiro a sua proteção”. 

Em entrevista para a Jornalismo Júnior, o escritor indígena Cristino Wapichana acrescentou que uma aprovação do marco temporal pelo Senado causaria mais mortes, por aumentar a guerra entre indígenas e não indígenas. “Os indígenas vão defender o seu território, o lugar onde nós nascemos, onde fomos criados a vida inteira, onde o povo vive há milhares de anos. Ninguém vai deixar que invadam a nossa  casa e nos expulsem dali por dinheiro”, aponta. Para o escritor, a tese do marco temporal representa uma violência aos povos indígenas, pois apaga toda a história e luta anteriores ao ano de 1988. “É como se tirassem não apenas a terra, mas toda cultura e ancestralidade. Embora [os povos indígenas] tenham muita ancestralidade intrinsecamente, seu território é fundamental porque ali está seu Deus, seu Deus o criou ali”, ressalta.

Argumentos usados em defesa e contra a medida 

O deputado Fábio Garcia (União-MT), coordenador jurídico da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na Câmara, defende que o marco temporal proporcionará segurança jurídica no campo. “O projeto busca evitar os conflitos no campo, na cidade e na comunidade indígena no Brasil”, declarou o deputado ao portal da FPA. O representante jurídico da Apib discorda: “a aprovação do marco temporal não vai diminuir os conflitos agrários, muito pelo contrário, vai causar uma instabilidade no campo, porque as terras indígenas vão ser invadidas pelos fazendeiros, como já estão sendo”, ressalta.

Maurício, que faz parte do povo indígena Terena, aponta que a preocupação com essa questão não deve se limitar aos povos originários, pois as ameaças às terras indígenas podem afetar a todos. “É importante ressaltar que as terras indígenas são responsáveis por uma proteção ambiental muito mais robusta do que terras não demarcadas ou terras comuns”, salienta. 

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), os territórios indígenas abrangem cerca de 28% da superfície terrestre do mundo e abrigam 80% da biodiversidade do planeta. No contexto de enfrentamento das crises climáticas, a demarcação é uma arma essencial: o modo de vida dos povos originários, baseado no uso responsável dos recursos naturais, são modelos de práticas sustentáveis e auxiliam na preservação das florestas que são cruciais para reduzir a emissão de gases do efeito estufa.

A bancada ruralista também levanta o debate sobre o quantitativo de terras demarcadas ao alegar que há uma vasta extensão de território para poucos grupos indígenas. Terena explica que a maioria das demarcações das terras indígenas brasileiras estão na Amazônia Legal, ou seja, os povos indígenas localizados em outros Estados da Federação não são abrangidos. “Muitos estados, por exemplo Mato Grosso do Sul e Paraná, não têm quantitativo de terra suficiente para seus povos indígenas e, justamente por esse motivo, é necessário demarcar esses territórios fora da Amazônia Legal”, esclarece o coordenador jurídico da Apib.

Ao declarar seu voto contrário ao marco temporal, o ministro Edson Fachin argumentou que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, anterior à própria formação do Estado e atua como cláusula pétrea na Constituição. Além disso, o ministro assinalou que a demarcação é apenas um procedimento declaratório realizado pelo Estado, ou seja, não cria terras indígenas, apenas as reconhece, conforme os direitos territoriais indígenas previstos no artigo 231 da Constituição. 

Para a Apib, a proposta é um escândalo ambiental e de direitos humanos. O escritor Cristino Wapichana concorda e acrescenta que o PL 490/07 é um crime contra a humanidade que não deveria progredir. “Espero que a pressão internacional não permita isso”, confessa.

*Imagem de capa: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima