Por Emmanuelita Emmanuel (emmanuelitaemmanuel@usp.br)
Segundo o dicionário, a solidariedade é a característica de uma pessoa que está disposto a ajudar, acompanhar ou defender o próximo. Entretanto, existem várias circunstâncias que podem interferir na predisposição de um indivíduo ou grupo a serem solidários. Do ponto de vista filosófico, Platão e Aristóteles escrevem que o ser humano é um sujeito político. Isso significa “ser com os outros na cidade (pólis)”, e compartilhar com a comunidade os esforços necessários para melhorar a vida em sociedade. Segundo o professor de Filosofia do IFPB, Emmanoel de Almeida, essa filosofia reforça que ninguém é autossuficiente e todos precisam uns dos outros, justificando, assim, o desejo de realizar ações solidárias.
O World Giving Index 2024 é uma pesquisa sobre generosidade realizada pela Charities Aid Foundation (CAF). Ela tem como objetivo medir o número de pessoas que ajudaram um estranho, doaram para uma ONG ou realizaram um voluntariado. Em 2024, o Brasil ficou na 86° posição, a segunda melhor posição conquistada pelo país.
Entre os nativos, a percepção sobre a solidariedade da população brasileira é diversa. Fatores como gênero, raça, região de origem, religião, entre outros, podem influenciar a forma como o indivíduo será tratado, considerando-se as múltiplas influências na formação e no desenvolvimento da cultura comportamental do país.
O Brasil foi fundado a partir da mão de obra escrava negra e indígena. A desumanização desses grupos por meio do trabalho forçado e a demonização de suas tradições ainda se perpetuam. Segundo o relatório da Oxfam, atualmente 63% da riqueza do país está concentrada nas mãos de apenas um por cento da população.
A desigualdade social impacta todas as áreas da vida, como saúde, educação e bem-estar. O sociólogo William Julius Wilson, em seu livro “Os Verdadeiramente Desfavorecidos: O Centro da Cidade, a Subclasse e as Políticas Públicas”, analisa os impactos da desigualdade social, com destaque para o isolamento social e comunitário. O autor define esses isolamentos como a separação de oportunidades e experiências, para Wilson, as populações marginalizadas possuem barreiras físicas e estruturais que os impede ou dificulta o seu acesso a instituições de qualidade, como escolas e serviços de saúde.
Apesar das consequências da disparidade social, grupos marginalizados tendem a ser solidários: em 2020, durante a pandemia do Covid-19, 63% dos moradores de favelas realizaram algum tipo de doação, ultrapassando a média nacional de 49%, segundo a pesquisa do Data Favela.
É possível ser solidário de diferentes formas. A maneira que o professor, sociólogo e Jornalista Alexandre Linares encontrou foi oferecer um pouco de privacidade aos seus estudantes na hora de mostrar, em sala de aula, as notas das atividades: “Pegava duas cadeiras e colocava do lado de fora para falar com eles, porque os alunos ficavam com muita raiva quando mostrava as notas; ficavam envergonhados com as notas vermelhas e azuis.”
Além disso, Linares comenta sobre a solidariedade em lugares multiculturais, como os bairros do Glicério e do Jardim Peri, na cidade de São Paulo. Esses espaços passaram a receber um número significativo de moradores estrangeiros a partir da chegada de imigrantes italianos no final do século XIX e início do século XX. Atualmente, esses bairros abrigam imigrantes e membros de diversas diásporas, provenientes de países como Senegal, Haiti, Bolívia, entre outros.
Tal confluência permite um intercâmbio de experiências e uma diversidade cultural visível nos estabelecimentos comerciais e atividades locais. Além disso, um número vasto de moradores possuem histórias e dificuldades similares, facilitando assim, a construção de um senso de pertencimento “são comunidades com muita solidariedade entre si e com as demais comunidades, uma solidariedade muito unida à fé e a cultura”, comenta o docente.

países pintadas dentro de um coração [Imagem: Acervo Pessoal/Emmanuelita Emmanuel]
Um olhar estrangeiro
O Brasil é o 5° maior país do mundo, com uma população diversa composta por diferentes nacionalidades de imigrantes e membros de diásporas, como Bolívia, Itália, Cuba, entre muitas outras. Atualmente, o Brasil possui uma comunidade de libaneses e descendentes maior do que a própria população do Líbano. Entre os estrangeiros que visitam ou moram no território brasileiro, há múltiplas percepções sobre a solidariedade dos brasileiros.
“A primeira impressão que eu tive das pessoas é que elas são muito alegres, muito acolhedores com os outros, especialmente com os estrangeiros.”
Sebastián Zavalía
Segundo o intercambista argentino Sebastián Zavalía, a população brasileira é calorosa e está sempre disposta a ajudar o próximo. “Outro dia eu fui cortar o cabelo com um amigo da Holanda que ainda não fala português. Ninguém falava inglês lá, mas mesmo assim, as pessoas tentaram se comunicar com ele ou usar o tradutor”, exemplifica
Quando questionado sobre os paulistas em particular, Zavalía afirmou: “aqui em São Paulo, as pessoas trabalham muito, têm uma vida mais rápida, é muita correria. Então, pode ser que sejam um pouco mais frias, mas sempre tem esse aspecto de família”
Solidariedade no país da violência?
No Brasil, a violência e a solidariedade andam lado a lado. Por isso, o ato de solidariedade pode variar, não apenas por características individuais, mas também de acordo com o momento histórico e o contexto social.
“De tempos em tempos o Brasil muda, demonstrando a violência que existe no país.”
Alexandre Linares
Segundo Linares, o Brasil apresenta, por vezes, uma hospitalidade movida por interesses, acolhendo determinados grupos quando há benefícios econômicos envolvidos. “Tem haitianos no Sul que trabalham em abatedouros de galinha porque, na época em que muitos imigrantes do Haiti entraram no país, os trabalhadores brasileiros queriam salários mais altos. Então, buscaram a mão de obra imigrante porque eles têm menos chances de fazer greve e recebem salários menores”, comenta.
O sociólogo também destaca que a hospitalidade e a solidariedade são marcadas por classe e contexto. Ele relata o caso de um jovem que vivia na Vila Andrade, região de São Paulo conhecida pelas suas disparidades socioeconômicas: “Ele era um menino branco, que fugiu da polícia porque estava sem a carteira da moto, e mataram ele em frente de casa, na frente da sua mãe. Que país é esse que tira a vida de uma pessoa?”
Apesar da recorrência de violências, muitas comunidades se unem para ajudar o próximo. Segundo o G1, no dia seguinte à morte do jovem, os moradores realizaram protestos, exigindo justiça.
Panorama mundial
A xenofobia é definida pelo dicionário como a repulsa a pessoas ou coisas provenientes de países estrangeiros. O escritor e crítico literário Chinua Achebe fala em seu livro “A educação de uma criança sob o protetorado britânico” sobre o poder de desumanização que narrativas pejorativas possuem. Definiu as histórias negativas sobre os habitantes do territórios africano como uma literatura da desvalorização, criada para defender o tráfico de escravos, “a escravização de um povo tão degradado não era apenas justificável, mas até desejável”, diz o autor.
Ideologias depreciativas estão difundidas em nossa cultura de diversas maneiras e tendem a se intensificar em períodos de crises econômicas e alta competição por recursos. Elas podem se manifestar de diferentes formas, desde ódio a desvalorização de um grupo, como as narrativas de que os imigrantes são os culpados pela situação econômica de um país. Além disso, fatores históricos, que geram rivalidades ou ressentimento entre grupos, assim como construções nacionalistas que disseminam estereótipos e preconceitos, são majoritariamente influenciadas por crenças previamente estabelecidas.
Líderes de grandes potências, como os Estados Unidos, estão utilizando repertórios, discursos e ações influenciadas pela xenofobia para criar ou desmantelar políticas públicas. Tais atitudes ferem os direitos humanos e a dignidade de comunidades marginalizadas, resultando em consequências que ultrapassam fronteiras.
Em março de 2025, o governo de Donald Trump, sob o pretexto que determinados indivíduos eram membros da gangue Tren de Aragua, enviou imigrantes venezuelanos, que não possuíam permissão legal para residir nos Estados Unidos, para uma prisão de segurança máxima em El Salvador. No entanto, segundo o G1, “o governo dos EUA não identificou quem são os homens enviados a El Salvador nem forneceu evidências de que eles eram de fato membros do Tren de Aragua.”
“A xenofobia vai crescer, porque a xenofobia cresce neste mundo de Trump.”
Alexandre Linares
Além disso, o governo Trump tem adotado uma postura negacionista em relação às discriminações enfrentadas por populações marginalizadas nos Estados Unidos, promovendo ações que enfraquecem instituições e projetos de lei criados para proteger esses cidadãos. Um exemplo disso é a proibição de programas voltados para a Diversidade, Igualdade e Inclusão (DEI), implementada pelo governo Trump. Segundo o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, elaborado pela organização sem fins lucrativos Anistia Internacional, “com a eleição de Donald Trump e a forte captura corporativa de seu governo, estamos sendo empurrados para uma era brutal em que o poder militar e econômico supera os direitos humanos e a diplomacia.”
Para Linares, é fundamental que o governo brasileiro resista a influências locais e estrangeiras que promovem a desumanização e o enfraquecimento da coletividade, para que a solidariedade permaneça presente e continue a crescer no país. A população, por sua vez, tem um papel essencial: cuidar uns dos outros. A solidariedade é um ato contínuo, e, em um país que enfrenta diversos problemas sociais como o Brasil, é necessário estar atento às crenças que permeiam o cotidiano. “Temos que lutar por um país aberto, que abrace uns aos outros, porque o brasil nasceu assim, diverso”, conclui o sociólogo.
*Imagem de capa: ROCKETMANN TEAM/Pexels
