Por Rachel M. Mendes ( rachelmmendes@usp.br )
“Acredita?” indagou, risonha, a minha tia avó “somos linhagem direta de um antigo rei português. Dom Manuel, se não me engano…”
Caro leitor: deixe eu adivinhar, deve estar imaginando a respeito dos próximos eventos que te contarei. Te aconselho que se liberte do cativeiro de suas expectativas: se pensa que te direi a respeito de uma tarde magnífica na companhia de minha querida tia ou que te narrarei a minha gloriosa jornada até a posição de soberania e um título na nobreza portuguesa, se engana. Ainda que tenham sido deliciosos momentos com a minha parente, não possuo planos de compartilhá-los com você, leitor. E também não o falarei de uma aventura ficcional em que me torno parte da realeza ibérica.
Foquemos nos fatos e em suas infinitas ramificações, portanto. Prossigamos, assim! Prossigamos! Não demorou para que eu voltasse para minha casa naquela tarde. Não demorou, tampouco, que reflexões acerca do que fora dito por minha tia me encontrassem. Imagine, leitor: eu, diretamente ligada ao sangue nobre de Dom Manuel!

Há sinceridade e um inconformismo conformado quando te conto dos devaneios que nasceram em minha mente naquele dia. Meu próprio sangue se sentou em tronos gloriosos. Foi coroado em diademas emblemáticas de um poder que se dizia eterno. Foi de grande ventura à casa que honrou. E, na passagem das muitas eras, o meu sangue em mim se encontrou.
Por acaso pensa que estou admirada? Que me sinto nobre diante de minha própria origem? Então se engana, caro leitor! Se assim pensa, assim se engana. Pois o meu sangue em mim se encontrou. Eu! Jovem moça cuja maior reação diante da notícia do parentesco com o tal rei foi a impressão singela de um sorriso desconfiado. Jovem moça cujo impacto do conhecimento de sua ascendência não representou mais que o divertimento de um fato familiar já dado ao esquecimento. Jovem moça sobre as quais antecedentes glórias, caso sejam factuais, em nada afetam materialmente.
A curiosidade (gosto de crer que tal virtude seja a mais doce amiga dos jornalistas) me pegou pelas mãos e me conduziu a pesquisas sobre o passado de meu familiar rei. Dom Manuel I, o Venturoso! O décimo quarto rei da história portuguesa. Viu com os próprios nobres olhos a glória de sua pátria lançando-se aos mares no esplendor das Grandes Navegações. Viu o desenvolver do emblemático estilo arquitetônico manuelino. Viu expansão e magnificência. Viu a glória portuguesa diante de seus olhos. Viu o fervor da conquista humana em tentativa vã de jurar sua eternidade. Pois o que viu e amou era vaidade.

Ri imaginando o tal rei ibérico e a sua família, os quais, muito provavelmente, se engrandeciam de suas graças terrenas. Ah, o poder! Ah, o renome! Ah, as posses! Ah, as conquistas! Ah, a arquitetura! Ah, a expansão! Ah, as terras! Ah, leitor! Ri ao imaginá-los proferindo juras e declarações de que suas glórias eram eternas. E ri, ainda mais intensamente, ao pensar em mim mesma como a constatação viva de sua vaidade. Sua nebulosa e ludibriadora vaidade. Em minha própria genealogia comprovava-se que cada resquício de poder, renome, posse, conquista ou terra não passava de vaidade e, agora, a tinha o único vestígio de sua existência obsoleta e perpetuamente atado à memória.
E ri, caro leitor, ao ver a mim mesma como carne e ossos que em si narravam a comprovação da vaidade humana. Ah, vaidade de vaidades! Como o tolo dormindo por envenenamento por ópio é aquele cujo descanso está em sua própria glória! Pois a vaidade é ilusória e a vida humana é névoa. Que há de passar, ao pó retornar e em pó se tornar.
Pensei, naquele momento, na arte Vanitas. Um subgênero especial de natureza-morta, baseado na versão latina de Eclesiastes 1:2 Vaidade das vaidades, diz o pregador, é tudo vaidade (vanitas vanitatum et omnia vanitas). Teve seu início na Holanda, como um confronto ao orgulho antropocêntrico proveniente das conquistas das Grandes Navegações. Seu foco era um: alertar do fim inevitável destinado a toda criação humana e, até mesmo, à nossa própria espécie. O lembrete (em meio a uma estética de caveiras, flores, frutas e joias) de que uma vida vivida em nome de glórias terrenas, passageiras que são, era tolice. Uma recordação de que, enquanto se vive, ainda é tempo de se arrepender e voltar os olhos ao que é eterno e duradouro.

Foi antes dito, meu caro leitor, pelo sábio Rei Salomão, vaidade de vaidades! É tudo vaidade! E aqui muito bem eu podia ver a validade contemporânea da filosofia Vanitas. Muito bem eu podia ver na história de um sangue real que jurou sua própria eternidade e então findou-se em uma mera jornalista que, com certeza, não é a princesa de Portugal.
*Imagem de capa: Reprodução/Wikimedia Commons
