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A “instagramização” da poesia: como a arte literária milenar se repaginou para e com as redes sociais

Com versos simplificados, a internet impulsiona a poesia e possibilita que seus escritores ganhem fama mundial

Por Alicia Matsuda (aliciamatsuda@usp.br)

A escritora indo-canadense Rupi Kaur, conhecida pelos livros Outros jeitos de usar a boca (Planet, 2017) e O que o sol faz com as flores (Planet, 2018), está, atualmente, em uma turnê mundial que esgotou ingressos e encheu teatros por 64 cidades, incluindo São Paulo, em fevereiro deste ano. Seus trabalhos, apesar de considerados best-sellers repetidas vezes, são recorrentemente definidos como instapoesia ou poesinsta, porque Rupi surgiu na internet como um perfil no Tumblr que publicava versos simples sobre sua dor. Hoje, com quase 5 milhões de seguidores, Kaur é expoente do fenômeno da literatura de poesia nas redes sociais, que tornou muitos poetas em celebridades, apresentando espetáculos entre stand-ups e saraus por todo o mundo. Frequentemente viral no Instagram, a poesia vem sendo impulsionada por ele, poetas agora sobem em palcos como pop-stars, e é possível que instapoesia seja responsável pela retomada do mercado editorial de poesia. 

Rupi Kaur lendo seu livro Outros jeitos de usar a boca, em Vancouver, no ano de 2017. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

No que tange à língua portuguesa, a alavanca da produção poética é refletida pelas inscrições no Prêmio Oceano 2023. Poesia foi a categoria com maior número de obras registradas, correspondendo a mais da metade dos 2.685 títulos. Somado a isso, o 11º Painel do Varejo de Livros no Brasil (2022) verificou, nos últimos três anos, um grande e crescente aumento na venda de obras de ficção, categoria que inclui a poesia. A união entre a internet e as livrarias foi muito benéfica, pois a escrita influenciada pela internet se mostrou competente em viralizar também fora dela, estimulando um aumento na circulação de poesia.  O novo gênero pode ser uma porta de entrada aos leitores para a poesia considerada tradicional, já que nas lojas físicas ou virtuais, os livros mais vendidos escritos por instapoetas dividem as prateleiras com nomes clássicos, podendo ser uma porta de entrada ao público leitor daquele para um mergulho mais aprofundado neste.

Versos simples, vocabulário coloquial, letras minúsculas, estrofes curtas e pontos finais como única pontuação:  a estrutura da poesinsta adapta o gênero milenar para um formato que chame a atenção do internauta no menor tempo possível. O poeta Francisco Mallmann, autor de haverá festa com o que restar (Urutau, 2018) e tudo o que leva consigo um nome (José Olympio, 2021), afirma que “As pessoas entenderam que o quadradinho [formato das postagens no Instagram] é ótimo com suas letras e com seus versos, e o modo como isso é replicado produz um alcance. E aí, tem gente que cria poesia para o Instagram, tem gente que põe poesia no Instagram, tem gente que compartilha trechos de livros…”. No caso de Kaur, essas características textuais marcantes não correspondem a uma questão unicamente funcionalista, mas são formas de honrar sua origem indiana, conforme explica em seu site: “No alfabeto Gurmukhi, não há letras maiúsculas ou minúsculas —  as letras são tratadas do mesmo jeito. Eu gosto dessa simplicidade. É simétrico e direto. Também sinto que há um nível de igualdade que essa visualidade traz para o trabalho. Uma representação visual do que eu quero ver no mundo: igualitariedade”. Quanto à inalteração de pontuação, ela completa que “A única forma de pontuação que existe no alfabeto Gurmukhi é o ponto final. Sem mudança de caixas e apenas pontos finais. Uma manifestação visual e homenagem à minha identidade de mulher diaspórica Punjabi Sikh”.

Poema de Kaur: “É uma benção/ser da cor da terra/você sabe quão frequentemente/as flores me confundem com uma casa?”. [Imagem: Reprodução/Instagram/@rupikaur]

Quando se trata do conteúdo, os versos tendem a se manter congêneres na maior parte destes poemas, pois a escolha é por assuntos que vieram à tona com a ajuda da internet, como o empoderamento de minorias na sociedade. O engajamento em lutas sociais é diverso, passando por tópicos como a imigração, o preconceito étnico, o racismo, a intolerância religiosa, entre outros. Dentre estes, há ainda um destaque para pautas provenientes da ascensão do feminismo liberal, tais como universo feminino, a emancipação social, a independência das mulheres e a saída de relacionamentos tóxicos. Em muitos casos, estes temas são pincelados sem muita profundidade, recorrendo a formas de identificação e instigando críticas, especialmente à Academia: “[os instapoetas] se apropriam de temáticas amplas para transformar o texto em algo consumível em diversas culturas”, estabelecem os autores Bruna Ozaki Fazano e Ulisses Oliveira no artigo “O gênero instapoetry e a inteligência coletiva”.  Para se ter um alcance tão extenso a partir do identitarismo, as experiências relatadas precisam ser quase universais, sobrando pouco espaço para a pessoalidade e a subjetividade do autor.

Já para Mallmann, “Essas discussões de classe, essas discussões de gênero, discussões dessa ordem, evidentemente tem pessoas que fazem essas reivindicações todas com uma linguagem super rebuscada, com uma linguagem super erudita, mas eu acho que esse desejo de se comunicar muito diretamente é também um exercício desse desejo de desierarquizar, de descanonizar, de decolonizar vários processos”. Com isso, a alteração da plataforma em que a obra se é publicada não necessariamente empobrece discussões importantes, mas as amplia: “Isso implica numa comunicação que se dá de um modo muito convidativo nesse sentido e, para isso, a internet também é esse espaço muito, muito fértil”.

Além dele, muitos na vanguarda de escritores viralizados on-line são mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+, racializados ou pertencentes a grupos sociais que, apesar de marcarem a história com obras extraordinárias, ocuparam poucos espaços de destaque na literatura tradicional do Ocidente até então. Com as plataformas virtuais, os autores não precisam enfrentar os desafios da indústria ou conseguir a aprovação de editoras, de modo que torna-se mais fácil autopublicar sua escrita.  Mallmann observa que “A poesia contemporânea brasileira que eu gosto é exatamente feita por pessoas que histórica e socialmente, talvez tiveram apartadas de uma possibilidade central”. A  roteirista e apresentadora da editora Antofágica Lívia Piccolo aponta que esse movimento de ampliação da voz de tais autores não ocorre simplesmente graças à internet: “Poetas mulheres estão ganhando espaço não só na internet, mas na literatura —  é um movimento que ocorre no mundo todo”. De acordo com ela, a estrutura atual permite que  a postagem dos textos na internet não seja  um apelo daqueles rejeitados pelos veículos tradicionais, mas uma escolha consciente de veiculação tomada pelos novos autores.

Além da alteração do perfil dos escritores e da mudança do público leitor, com a rapidez e alcance da veiculação, a poesia não precisa mais passar por um processo demorado de publicação editorial. Agora, da tela do celular do escritor para a do leitor, basta um clique. É o que afirma Aline Bei, escritora de Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras, 2021): “A internet é importante e pode ser usada de uma forma muito interessante pelos artistas, […] me parece um pouco mais livre do que antes, que, para você ir a um programa de televisão, alguém ia ter que te convidar, para alguém ler o teu livro e gostar, ia ter que te mandar uma carta que iria demorar para chegar; hoje, o impacto de uma leitura é rapidamente absorvida pela sua autora (ou pelo seu autor), porque chega com uma força muito clara e isso pode ser positivo, é claro, mas pode ser negativo também, mas se você souber lidar, pode ser interessante”.

Aline se tornou uma autora best-seller no Brasil com ajuda de seu trabalho incisivo nas redes sociais: seu primeiro livro, O peso do pássaro morto (Nós, 2017), foi publicado inicialmente por uma pequena editora independente e teve uma tiragem modesta de apenas mil exemplares. Em um relato à Folha de S. Paulo, ela explicou que analisava perfis no Instagram que demonstravam interesse em literatura e, selecionando aqueles que pareciam leitores em potencial, os abordava diretamente por meio da ferramenta de mensagens da plataforma, sugerindo que conhecessem seu novo projeto literário. O sucesso foi tamanho que, com esse livro, Aline venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de autor estreante com menos de 40 anos.

Poema de Aline Bei publicado exclusivamente em sua conta [Imagem: Reprodução/Instagram/@alinebei]

Assim, para se beneficiarem da internet, os escritores não precisam tê-la como objetivo final de publicação: a veiculação impressa tradicional e a on-line coexistem e não se ameaçam, da mesma forma que “Com a televisão, o cinema não deixou de existir”, como brinca Lívia. Portanto, muitos poetas famosos no Instagram não cabem no padrão de instapoetas, como é o caso de Mallmann: “Eu estou aqui compartilhando as páginas do meu livro, mas eu não crio para o Instagram ou para qualquer página que seja. A minha criação não passa por isso, não é pensada para essas páginas ou para essa linguagem […]. Eu penso no Instagram enquanto um lugar de compartilhamento do meu trabalho”. 

“Existe um chamado visual muito específico que prende uma, questão até cognitiva, o negócio é um tecido vermelho que diz”, explica Mallmann, “tem a vibratilidade do vermelho, são frases curtas no caso dos tecidos”. [Imagem: Reprodução/Instagram/@francisco.mallmann]

“A poesia deu match com a internet”, explica Lívia, por ser uma forma de arte que não exige tanto tempo disponível ou tanto esforço para ser aproveitada.  O leitor de poesia não precisa da dedicação do leitor de um romance, por exemplo, pois agora a poesia está entre os posts no feed do Instagram, indo  ao encontro do internauta entre uma postagem e outra. Por ter esse caráter volátil, engajado e conectado, a poesinsta se adequa ao tempo atual e conversa muito bem com o momento de produção voraz de conteúdo e bombardeamento constante de informação. É um formato curto, fácil de consumir e que facilita o acesso à literatura para pessoas que não necessariamente iriam se debruçar sobre títulos clássicos em outra circunstância.

Diferentemente do indicado por visões mais puristas, a instapoesia não rouba e nem pretende roubar o espaço da poesia tradicional.  Ao invés disso, ela ocupa um espaço que não era permeado de poesia nenhuma até então: o feed das redes sociais.

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