Bruna Buzzo
Uma boa música e um belo olho azul maquiado de forma peculiar com lápis preto. O close se vai e quatro jovens aparecem em um ambiente que, no mínimo, poderíamos chamar de excêntrico. Assim começa o filme Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), talvez a mais famosa produção de Stanley Kubrick. Adaptação do livro homônimo do escritor britânico Anthony Burgess, o filme manteve a tensão e a agonia que o livro nos passa, acrescentando a estes uma trilha sonora perturbadora, cores marcantes e boas interpretações.
O livro é dividido em três partes com sete capítulos cada: a primeira retrata as violentas ações de Alex e seus draguis em uma sociedade corrompida pela violência juvenil; a segunda mostra a prisão e o Tratamento Ludovico, uma nova técnica de repressão à violência, ao qual o jovem Alex é submetido na cadeia. A terceira parte nos mostra os resultados do tratamento sobre a vida do rapaz já liberto, privado de suas escolhas individuais e o caminho que ele tomará dali para frente.
O roteiro do filme foi produzido em cima da tradução norte americana para o romance de Burgess: mal feita, esta versão do livro cortou o último capítulo, em uma decisão arbitrária que o considerou “destoante” do resto do livro. A divisão do livro é clara e fundamentada em cima da tradição britânica de que a maturidade é atingida aos 21 anos. Deste modo, Alex, no 21º capítulo, se liberta dos vícios de sua juventude para se tornar um adulto que faz escolhas livres, conscientes e responsáveis. E foi o toque de classe que faltou ao filme de Kubrick.
Para quem conhece apenas o filme, o final diferente do livro pode ser uma surpresa, especialmente se você pensou a cena final como um retorno às barbaridades do começo da saga. Há quem considere, no entanto, que o ato sexual em público é, para Alex, uma forma que faz com ele se sinta aceito e redimido por uma sociedade que já não o censura mais. Neste caso, os finais não são tão destoantes assim, mas falta o toque de classe que transforma o jovem delinqüente em um verdadeiro lorde inglês: educado, com um bom emprego e um gosto musical refinado.
O livro faz parte do que se poderia chamar a “Trindade distópica” da literatura inglesa composta por 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e Laranja Mecânica (Burgess). Os três livros mostram a seus leitores um futuro catastrófico e, em muitas partes, plausível. Distopia é um processo de construção literária oposto à utopia: constrói-se um mundo no qual não se quer viver, um mundo que habita seus pesadelos e no qual você não quer acordar.
Frutos da sociedade em que seus autores viveram, os três livros nos mostram o que poderia ser de nós hoje: o primeiro deles, Admirável Mundo Novo é de 1932 e traz os reflexos da Primeira Guerra Mundial, da crise econômica de 1929 e das crises morais e religiosas por que passava a sociedade de então. 1984, escrito em 1949, carrega consigo os terríveis efeitos da Segunda Guerra e da ascensão do comunismo. Laranja Mecânica, o último da trindade na ordem cronológica, foi escrito em 1962 e, se fossemos escolher inspiradores para a obra, seriam a Guerra Fria, as transformações morais por que o mundo passava e os muitos valores que caíram durante os anos de 1950-60.
No cinema, os três livros ganharam adaptações, sendo que a única brilhante, ironicamente, foi a do livro menos notável e famoso. Dos três, Laranja é o livro menos inspirado, menos “genial”, por assim dizer, e seu filme é o melhor de todos. Juntou-se Kubrick à um bom roteiro: eis um clássico. Quanto aos outros dois filmes, nenhum brilho aparente os abençoou e foram subjugados a simples adaptações de clássicos literários para o cinema. O fato do livro de Burgess não ser tão conhecido quanto os outros dois também colaborou em muito para a celebração do titulo Laranja Mecânica como sendo “o filme de Stanley Kubrick”.
A quem foi apresentado primeiro ao livro, falta a Kubrick o carisma e a simpatia que o jovem Alex nos passa, falta a pena que o sofrimento dele nos causa no livro e, acima de tudo, falta a redenção final. Quem assiste ao filme depois de ter lido Burgess sente falta do desfecho e pensa que Kubrick voltou Alex às suas origens animais e nem sequer lança uma interpretação positiva sobre o final do filme.
Livro e filme são fantásticos. A sensação geral de ambos foi muito bem contada e Kubrick soube conferir sua genialidade nas telas à obra de Burgess munido de um bom elenco e uma cuidadosa escolha da trilha sonora. Malcolm McDowell é fantástico em sua interpretação de Alex, que no livro não passa de um garoto. Além disso, desafio qualquer espectador de Laranja Mecânica a voltar a ouvir Singing in the rain apenas como uma bela música de Frank Sinatra, sem chutes ao fundo.
Como em toda adaptação – e apesar dos 138 minutos do filme – muitas cenas foram cortadas do roteiro e algumas ordens foram invertidas. O velho mengido irlandês do começo do filme, por exemplo, é, no livro, um professor que tem seus livros rasgados e depois bate em Alex com seus colegas leitores quando ele visita uma biblioteca pública ao sair da prisão.
No entanto, a cena que mais faz falta aos leitores é o momento em que o título do livro se esclarece, fato este que em momento algum ocorre no filme. Quando agridem o escritor e sua esposa, Alex e sua gangue destroem o livro que este escrevia. Chamava-se Laranja Mecânica. Quando retorna ao “lar” ferido, a leitura de alguns trechos filosófico-reflexivos do livro causa uma terrível sensação em Alex e o faz sentir-se mal por seus atos. Aqui poderíamos encontrar o início da nova vida do garoto e encontrá-lo, no futuro, pacífico e enquadrado nos moldes de um sistema que conseguiu reprimir a violência pela ausência de nossa característica mais humana, o livre arbítrio.