Por Filipe Moraes (filipealess04@usp.br)
“Outras vozes pensando e produzindo críticas lançam luzes sobre outras zonas cinzentas para além do preto no branco que já conhecemos das constantes discussões sobre a arte”
Yasmine Evaristo, crítica de cinema
A indústria cinematográfica abrange muito mais do que simplesmente a criação de um filme. Dentro desse universo, a crítica de cinema tem um importante papel na maneira como os filmes são recebidos e compreendidos tanto pelo público quanto pela própria indústria.
Durante muito tempo, a crítica foi protagonizada pelos homens, contribuindo para a perpetuação do machismo na indústria cinematográfica e de estereótipos das mulheres nos filmes. No entanto, esse cenário tem mudado gradualmente, à medida que mais mulheres conquistam espaço no campo. Com esse avanço, as discussões se enriquecem com perspectivas diversas, ampliando a representatividade e transformando o mundo do cinema.
Mas primeiro, o que faz um crítico de cinema?
De acordo com Yasmine Evaristo, graduada em artes plásticas, crítica de cinema e pesquisadora de cinema de horror, o crítico desempenha o papel de construir pontes entre o espectador, a produção e o público. “Em momento algum o crítico tem a função de explicar um filme, mas sim de oferecer ao espectador lentes para possíveis leituras da produção”, explica.
Para Maria Caú, graduada em cinema pela UFF (Universidade Federal Fluminense), editora do site criticos.com.br e membro da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o crítico tem o papel de fazer a mediação entre a obra e o público. “Eu sempre digo que o trabalho do crítico é facilitar o diálogo entre o público e os realizadores. É um trabalho basicamente de mediação, além de ser um trabalho de chamar atenção, de ajudar a reverberar uma obra”.
Maria destaca ainda que muitas pessoas encaram o crítico como uma figura autoritária, dotada do poder de julgar a qualidade de um filme e decidir se ele merece ser recomendado ou não. “Não escrevo para dizer às pessoas que elas não devem ver um filme, eu escrevo para participar de um diálogo, para mostrar o meu ponto de vista”, acrescenta.
Essa concepção, segundo ela, é forjada pelos meios culturais, que criam um estereótipo distante da realidade. “Isso é uma visão que as pessoas têm através da literatura e do cinema, que mostra o crítico sempre como uma pessoa muito cheia de autoridade, uma pessoa difícil, que sempre está procurando problemas em tudo”, aponta Maria.
As mulheres na crítica de cinema
Os primeiros críticos de cinema surgiram nos anos de 1900 na Europa e nos Estados Unidos durante o processo de amadurecimento do cinema. No Brasil, a crítica cinematográfica ganhou força junto com o progresso do cinema nacional nas décadas de 1910 e 1920. Assim como em outras áreas da sociedade da época, a maioria desses profissionais eram homens.
Apesar dos desafios, algumas mulheres conseguiram se destacar na profissão. Figuras como Susan Sontag e Laura Mulvey se sobressaíram por suas análises e influenciaram a crítica de cinema.
Susan Sontag, renomada escritora e ensaísta norte-americana, explorou a estética e o significado de diversas formas de arte, incluindo análises sobre o cinema. Seus ensaios críticos, como Contra a Interpretação (Against Interpretation, 1966), desafiaram as convenções ao questionar a ênfase na interpretação intelectual, propondo que o foco fosse a experiência sensorial e estética das obras.
Laura Mulvey, crítica cinematográfica e feminista britânica, é conhecida por seu trabalho Prazer Visual e Cinema Narrativo (Visual Pleasure and Narrative Cinema, 1975). A obra introduziu o conceito de Male Gaze – que se refere à representação das mulheres na mídia sob a perspectiva do olhar masculino, resultando em sua objetificação como objetos de desejo – e trouxe à tona questões de poder, sexualidade e representação de gênero no cinema. Suas análises ajudaram a redefinir o campo da teoria cinematográfica e a promover uma compreensão mais crítica da forma como os filmes moldam e refletem as normas sociais.
Apesar dos avanços, as mulheres ainda são minoria entre os críticos de cinema. Em 2016, o jornal The Guardian divulgou um relatório sobre a proporção de gênero entre os escritores do site Rotten Tomatoes — uma plataforma que agrega críticas de cinema e televisão — revelando que apenas 27% dos autores eram mulheres.
No Brasil, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema possui apenas 19 mulheres de um total de 94 associados. Esses dados foram apresentados durante a 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes em 2017, pela crítica de cinema e professora da UFPel, Ivonete Pinto, durante uma mesa de discussão intitulada “As mulheres na crítica: cenário brasileiro”.
A demanda por uma representação mais equilibrada das mulheres na crítica cinematográfica tem sido discutida na indústria do cinema, e são as próprias mulheres que têm liderado essa conversa.
Em uma entrevista ao The Guardian, a atriz norte-americana Jessica Chastain destacou a escassez de mulheres na crítica especializada. “Algo que as pessoas não falam são os críticos. Quando 90% dos críticos são homens, talvez eles não possam fazer uma crítica neutra no que diz respeito ao gênero, por isso precisamos entender que são necessárias mais mulheres críticas de cinema, para deixar claro que histórias sobre mulheres são igualmente interessantes”, comentou a atriz.
Os desafios que as mulheres críticas enfrentam
Um dos principais desafios enfrentados pelas mulheres na crítica cinematográfica é a falta de espaço. Yasmine, ao abordar essa questão, destaca: “O principal, ao meu ver, é ter espaço. Ainda sinto que somos hostilizadas na maioria dos ambientes por nosso gênero. Como se nossa capacidade de ter e transmitir conhecimento se limitasse a nossa identidade de gênero. Essa hostilidade sabota nossa autoestima e em alguns momentos nos leva a questionar nossa capacidade de comunicação”.
Por outro lado, Yasmine ressalta a possibilidade de encontrar espaços em redes de apoio formadas por mulheres. “Existem redes de apoio entre mulheres, e são nessas redes de apoio que nos organizamos para divulgar nossos trabalhos, discutir estratégias de articulação para impulsionar esses trabalhos, bem como o resgate da produção cinematográfica e teórica sobre cinema também feito por mulheres.”
As críticas escritas por mulheres frequentemente recebem tratamento diferenciado e, em muitos casos, são subestimadas ou desvalorizadas em comparação com as críticas produzidas por homens. É comum que as mulheres recebam críticas extremamente agressivas e pessoais sobre seus trabalhos.
Maria Caú ilustra essa diferença no tratamento com sua experiência: “Por exemplo, no meu veículo, há quatro editores, e eu sou a única mulher. Sempre que publico uma crítica, os comentários são muito mais maldosos. Enquanto um crítico homem pode ter suas opiniões contestadas, no caso das mulheres, frequentemente as pessoas tentam desqualificá-las profissionalmente, questionando seu conhecimento sobre cinema ou até mesmo comentando sobre sua aparência”.
Yasmine destaca outro problema enfrentado pelas mulheres na crítica cinematográfica: o tokenismo. Ela observa que muitas vezes existe a ideia equivocada de que as mulheres só são capazes de discutir o cinema dentro de limites predefinidos por sua identidade. Por exemplo, uma mulher negra como ela poderia ser esperada apenas para falar sobre cinema negro ou filmes relacionados a questões étnico-raciais, com um recorte feminino.
No entanto, Yasmine enfatiza que as mulheres têm a capacidade e o direito de falar, escrever e pesquisar sobre uma variedade de gêneros, escolas e períodos da produção cinematográfica.
Essas disparidades refletem preconceitos enraizados na indústria do cinema e na sociedade, que perpetuam uma visão de que as vozes femininas não têm o mesmo peso ou autoridade que as masculinas. “O caminho para superar essas barreiras é a mudança da mentalidade de quem acredita que mulheres são inferiores intelectualmente, estamos aqui criando, pesquisando, existindo e contribuindo para a formação crítica e não vamos recuar”, aponta Yasmine.
O papel da redes sociais na crítica de cinema
A internet, especialmente as redes sociais, contribui para amplificar as vozes das mulheres na crítica cinematográfica. Antes da era digital, o acesso ao espaço de publicação e divulgação de críticas era mais restrito e controlado por veículos tradicionais, que muitas vezes favoreciam vozes masculinas.
Segundo Yasmine, as redes sociais se tornaram um ambiente onde qualquer pessoa pode divulgar seu trabalho. Ela explica que a internet elimina as barreiras geográficas, permite parcerias e possibilita que pesquisadoras de temas semelhantes se conectem e colaborem entre si. “Eu pesquiso cinema de horror, mas por meio das redes conheço e posso apoiar o trabalho de mulheres que pesquisam outros temas como ficção científica, cinema clássico, documentários e etc.”
Além disso, Yasmine ressalta o papel das redes sociais no fortalecimento dessas conexões. “É um espaço no qual podemos nos apoiar por meio de divulgações e trocas de informações. Essas redes se fortalecem, mesmo quando estão conectadas indiretamente.”
A importância das análises femininas na representatividade das mulheres nas telas
As mulheres críticas têm desempenhado um papel importante na promoção de filmes dirigidos e produzidos por mulheres, bem como obras que abordam questões femininas. Elas trazem à tona filmes que podem não receber a atenção merecida em outras esferas, destacando histórias diversas e inclusivas, além de trazer luz a temas relevantes e subtextos presentes nas obras.
Maria Caú explica que diversas pesquisas comprovam que críticos homens assistem a menos filmes dirigidos ou protagonizados por mulheres. Isso resulta em menor divulgação e reverberação desses filmes, devido à desproporção de gênero na crítica. Ela também ressalta os impactos dessa invisibilidade. “Tem um impacto muito grande desses filmes não estarem sendo vistos, porque os homens veem menos. Eles não são analisados tanto e, por consequência, muitas vezes não são premiados, o que é muito problemático”.
No cenário internacional, o Oscar é amplamente reconhecido como uma das cerimônias de premiação mais importantes do mundo. No entanto, apesar de sua proeminência, a representação feminina nas principais categorias do Oscar é notavelmente escassa. Em suas 96 edições, apenas oito mulheres foram indicadas ao prêmio de Melhor Direção, de um total de 474 indicados, e somente três delas conquistaram a vitória.
Yasmine Evaristo comenta como as mulheres críticas contribuem na promoção de filmes produzidos e dirigidos por mulheres. “A resposta é bem objetiva: pesquisando, produzindo críticas, entrevistando, ou seja, falando o máximo possível sobre essas produções. Aproveitar de seu espaço para tornar conhecidas essas produções e suas realizadoras.”
Outro ponto problemático na indústria cinematográfica é a estereotipização das personagens femininas nas telas. A falta de vozes femininas na crítica contribui para a perpetuação de visões limitadas e simplistas sobre o papel das mulheres na sociedade. Sem uma diversidade de perspectivas no ramo, torna-se muito mais difícil romper com esses estereótipos.
Por exemplo, em muitos filmes de ação, as mulheres costumam ser retratadas como frágeis e dependentes dos personagens masculinos para sua salvação, reforçando estereótipos de fragilidade e submissão. No entanto, uma crítica cinematográfica com uma perspectiva feminina pode destacar como essas representações são prejudiciais e contribuir para uma mudança de paradigma na indústria cinematográfica.
Da mesma forma, filmes que retratam mulheres em papéis estereotipados, como a “dona de casa perfeita” ou a “mulher fatal”, podem ser desconstruídos e analisados criticamente por profissionais com diferentes pontos de vista e abordagens. “Novos olhares sobre a produção cinematográfica multiplicam a diversidade e estabelecem novas subjetividades de gêneros, e coloco no plural porque não é apenas sobre o gênero feminino. Outras identidades também são repensadas, inclusive fora da binariedade estabelecida culturalmente”, aponta Yasmine.