Jornalismo Júnior

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46ª Mostra Internacional de SP | ‘All the Beauty and the Bloodshed’

Uma balada sobre a beleza e os horrores da fotografia

Posicione o seu alvo. Procure o melhor ângulo. Ajuste o foco. Prepare a câmera. 3, 2, 1 e CLIC. Você acabou de tirar uma foto. Mas qual é o significado por trás dessa imagem que você acabou de produzir? Essa é a proposta do documentário All the Beauty and the Bloodshed (2022), mostrar o que uma foto quer nos mostrar.

Nada melhor para entender a mensagem por trás de uma fotografia do que acompanhar a história de uma pessoa envolvida no ato. Por isso, ao longo de 2 horas, acompanhamos a vida da fotógrafa Nan Goldin, famosa no mundo artístico por trabalhos íntimos e que davam voz para pessoas esquecidas.

E aqui temos o primeiro ponto importante que o filme quer mostrar sobre o mundo da fotografia., o papel dela para conseguir aumentar a autoestima das pessoas ao dar destaque para elas e ao que elas querem dizer. Então, com um simples clique na câmera, a fotógrafa é capaz de revelar a beleza dos corpos LGBTQIA+, de resgatar o brilho de mulheres que sofreram violência doméstica e de mostrar a importância de falar sobre a crise do HIV.

O curioso é que esse papel de dar voz para populações oprimidas não é particular de uma única forma de arte. Pelo contrário, diria que todas as artes dialogam um pouco com essa questão. Não só a arte, mas a própria comunicação. Afinal, com as mesmas palavras que escrevo essa resenha poderia contar a história de uma mulher que sofreu agressões. Ou com o mesmo recurso de comunicação chamado jornalismo poderia destacar a crise da AIDS, mostrando como a comunicação e a arte, em especial o jornalismo e a fotografia, andam lado a lado.. 

Nan Goldin é uma das figuras centrais no documentário, seja na sua história pessoal com a fotografia, quanto em sua luta contra a família Sackler. [Imagem: Reprodução/Nan Goldin]

Nem só de dar voz para os outros vive a arte, ela também é fundamental para dar voz a si mesmo. E aqui temos mais uma importância da fotografia que o filme quer mostrar. Através do ensaio fotográfico ‘The Ballad of Sexual Dependency’, é mostrado como as fotos foram utilizadas por Nan Goldin como uma válvula de escape. Graças ao simples ato de apertar o botão de disparo da câmera, a fotógrafa foi capaz de dialogarcom traumas de sua vida, e muitas vezes uma forma de lidar com eles.

Mais uma vez podemos fazer uma comparação com o ato de escrever. Fugindo um pouco da resenha e do próprio jornalismo, a escrita é uma importante válvula de escape na poesia e na escrita mais ficcional, por assim dizer. Afinal, o quanto da vida de um escritor não é aquilo que ele escreve? Novamente, até que ponto o filme dialoga somente com a arte de fotografar e não com outras formas de ver e entender o mundo?

O vencedor do Festival de Veneza não fala apenas sobre o papel da fotografia para entender o mundo. Grande parte da trama também se preocupa em abordar a chamada crise dos opióides. Resumidamente, opióides são medicamentos derivados do ópio e utilizados para combate da dor, porém, devido ao seu grande poder viciante, eles podem causar dependência e até a overdose.

E essa dependência química aos opióides ganha um novo significado nos EUA com a chamada epidemia dos opióides. Com o medicamento Oxycontin, muitos norte-americanos acabaram desenvolvendo um vício tão grande que só acabou no cemitério após uma overdose. Mas como esses medicamentos tão viciantes foram aprovados pelos médicos? A resposta é simples: dinheiro. A empresa responsável por eles, Purdue Pharma, conseguiu comprar e manipular a medicina para que a sua droga fosse aprovada. Se quiser mais informações, a minissérie Dopesick explora essa crise de maneira mais detalhada.

Com a vitória do documentário no Festival de Veneza, o filme se torna o segundo documentário, em quase 80 edições, a levar o Leão de Ouro para casa. [Imagem: Divulgação/Neon]

“Mas o que essa crise de opióides tem a ver com Nan Goldin e seu trabalho?”, você deve estar se perguntando. Bem, tudo. Mais do que ricos gananciosos, os donos da Purdue Pharma eram ricos, gananciosos e filantrópicos. A família Sackler, dona da Purdue Pharma e responsáveis diretos pela crise de opióides, investia diretamente em museus e universidades do mundo inteiro, mais do que isso, eles recebiam homenagens nesses lugares. E nesse mundo artístico é que entra o nome de Nan Goldin.

Devido ao fato de ela ser uma vítima que sofreu overdoses causadas pelo Oxycontin e ser uma figura importante na arte, ela é fundamental no boicote artístico aos Shacklers. Através de protestos em museus e universidades, os manifestantes exigiam que esses lugares parassem de receber dinheiro dessa família e retirassem o nome deles de murais e placas. Afinal, aceitar dinheiro de uma família que financia uma matança legalizada causada pelos opióides é ser cúmplice de todos os crimes cometidos por eles. 

E aqui está a outra parte importante em All the Beauty and the Bloodshed. O filme busca documentar toda a jornada que essas pessoas passaram para que os museus finalmente atendessem aos seus pedidos. Ele documenta o processo de confecção de cartazes, as reuniões para discutir as ações dos grupos e as próprias manifestações. Sempre mostrando como a arte também pode ser uma ferramenta de protesto e, nesse caso, de mudança

Graças a essas informações sobre o filme, podemos analisar o seu último ponto de destaque: o título. Devido à importância da Família Sackler na obra, a ‘beleza’ pode se referir aos atos filantrópicos que eles praticavam, enquanto o ‘derramamento de sangue’ pode se referir a crise de opióides que eles próprios financiaram. Ou ainda, partindo do ponto da Nan Goldin e do mundo da fotografia, a ‘beleza’ pode se referir ao seu trabalho em dar voz para as pessoas e o ‘derramamento de sangue’ se refere aos boicotes que ela fazia contra os Sacklers para acabar com a matança legalizada deles.

Independentemente do significado ou não significado do título, o fato é que All the Beauty and the Bloodshed (ou Toda beleza e derramamento de sangue, em tradução livre) é uma obra muito poética e trágica, muito divertida e muito pesada de se assistir, muito bela e muito cruel. E essa dualidade é o que melhor caracteriza o vencedor do Leão de Ouro em Veneza neste ano e, quem sabe, do Oscar de Melhor Documentário no ano que vem.

Esse filme faz parte da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto. Confira o trailer abaixo:

*Imagem de Capa: Divulgação/Neon

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