Um consenso velado entre toda sociedade é o de que o conceito moderno de “filme de animação” foi criado com base no estilo consagrado de Walt Disney. Personagens com traços simples, quase caricaturais, histórias de estilo maniqueísta (o belo herói salva uma linda princesa aprisionada por um terrível vilão) e fundo moral. Ao longo dos anos essa estrutura sofreu modificações (implementando elementos novos como o humor), principalmente com a evolução da animação gráfica, tendo empresas como a Pixar e a DreamWorks no papel de empreendedoras de vanguarda. Entretanto, ainda há uma espécie de senso comum que classifica animações como “coisa de criança”.
Poucos sabem que as animações não começaram como algo exclusivo para o público infantil. Na verdade, a liberdade de criação permitida por esse estilo de filme leva a resultados que ultrapassam até mesmo a barreira do sonho, alcançando resultados aproximados a sensações do inconsciente.
Analisando friamente, até mesmo as primeiras animações ditas “infantis” abordam temas sérios. Em Steamboat Willie, primeira participação de Mickey Mouse nas telas, há referência à violência contra animais, abuso de poder e piadas que envolvem lesão física e secreções corporais.
Contemporaneamente as animações ainda abordam alguns temas adultos, infiltrados nos filmes infantis, como forma de diversificar o público. Não faltam na internet textos conspiracionistas que analisam as mensagens subliminares nos desenhos (as famosas insinuações sexuais contidas em Rei Leão e Caminho para o Eldolrado, para apenas citar alguns casos).
Alguns diretores são mais corajosos e investem em um nicho cada vez mais forte: animações voltadas exclusivamente para o público adulto. Mas não confunda isso com pornografia feita com o traço de um lápis. Estes são filmes de conteúdos difíceis, filosóficos, que muitas vezes abusam de cenas “freaky” e possuem personagens psiquicamente complexos. O Cinéfilos selecionou para você uma pequena lista de animações adultas premiadas e que valem a pena serem vistas. Cuidado apenas para não ter pesadelos com algumas delas…
1 – As bicicletas de Belleville
Os franceses sempre nos surpreendem. Berço vanguardista da arte moderna, o charmoso país europeu não se cansa de inovar, mantendo a arte em um constante ciclo de reflexão. As bicicletas de Beleville, dirigido por Sylvain Chomet e indicado ao Oscar de melhor animação em 2003, transpõe o espectador a uma cidade claustrofóbica, na qual a estética física das personagens simboliza o estado moral da sociedade e dos indivíduos que a compõe.
O filme conta a história do garotinho Champion, que vive com sua avó e seu cachorro em uma simples casa no interior. O garoto, antes depressivo e recluso, ganha uma bicicleta de presente e decide se tornar um atleta profissional. Com o passar dos anos, a pequena casa é engolida pelo avanço da cidade, e a alegria do esporte torna-se novamente depressão frente às obrigações de vitória. Após disputar o Tour de France, Champion é seqüestrado por uma estranha gangue, e sua avó parte em uma busca para salvar o neto.
Nos seus curtos 80 minutos há uma sutil reflexão sobre a efemeridade da vida e da constante deturpação dos valores da sociedade. Belleville é habitada por pessoas com corpos disformes e rostos artificiais de uma moral corrupta e velada. A magreza de Champion em sua fase adulta nada mais é do que um sinal da finitude de sua felicidade e vitalidade, roubadas pelas obrigações da vida adulta. O fim impactante estende longas discussões do sentido da existência por meio da sutil depressão na frase: “O filme acabou vovó”.
2 – Akira
Esteticamente violento, filosófico e metafísico são as melhores palavras para descrever Akira, filme baseado no mangá homônimo e dirigido por Katsuhiro Ôtomo, que conta a história de uma Tókio futurista em meio a uma guerra civil envolta em interesses por uma espécie de “sentido da vida” com o codinome de Akira. Há um pouco de teologia na discussão sobre a essência fundamental presente nos seres. Na verdade essa “energia” que dá nome ao filme é quase como o OM, som fundamental presente no hinduismo.
A profusão de interpretações e informações com certeza impedirá o seu sono por muitos dias a fio. Afinal, uma pergunta eternamente ficará em sua cabeça: seríamos todos nós o Akira?
3 – Uma história de amor e fúria
O cinema brasileiro sofre bullying, e isto não é mentira. Muitas vezes os filmes tupiniquins são desprezados e não tem a atenção merecida. Isso se torna maior ao nos referir a projetos ambiciosos e inovadores, como o caso desta animação.
Poucos sabem, mas recentemente “Uma história de amor e fúria” (Dirigido por Luís Bolognesi e com as vozes de Selton Mello e Camila Pitanga) foi premiado no festival de Annecy. O título inicial do projeto, que seria “Lutas”, define muito bem a mensagem por trás da história: um homem imortal viaja através de fatos marcantes da história do Brasil (descobrimento, conflito da Balaiada, ditadura militar e rio pós apocalíptico) em busca de proteger Janaína, sua amada que reencarna em diversas mulheres ao longo das eras.
Esteticamente há uma semelhança com história em quadrinhos. Os personagens não se movem a todo momento, prevalecendo os diálogos em detrimento da ação. Os cortes de cena são rápidos e os closes exibem detalhes que o olho humano é incapaz de ver sozinho. A discussão é em torno da luta pelo amor em meio a um ambiente de repressão. Óbvio que por trás disso há uma análise crítica da história do Brasil, escrita pelos vencedores. Expõe uma faceta dos fatos que não conhecemos ou nos recusamos a enxergar, além de projetar um futuro desolador, envolto em uma guerra civil pelo bem mais precioso do nosso país: a água.
Por Gabriel Lellis
g.lellis.ac@gmail.com