Imagine as seguintes cenas, diretamente da imaginação de Lygia Fagundes Telles:
Antes do Baile Verde (Companhia das Letras, 2009), duas moças se arrumam: uma empregada e a filha de seu patrão, o qual, no quarto ao lado, agoniza em seu leito de morte. A princípio, tem-se isso. As duas moças e a ansiedade onipresente quanto aos últimos momentos do patriarca. As duas debatem se a filha deveria ou não ir ao baile, em vez de fazer companhia ao seu pai, e é isso. A história acaba sem desfecho.
Meia-noite em Ponto em Xangai, uma cantora de ópera conversa com seu empresário em seu quarto de hotel, enquanto um funcionário a atende. Eles falam em inglês e debocham a China e os chineses. O funcionário entende tudo, mas não fala nada. Quando o empresário vai embora, a cantora dispensa o funcionário e senta-se para descansar. Ruídos na noite escura criam uma atmosfera tensa. E é isso.
São esses dois dos contos mais brilhantes na coletânea Antes do Baile Verde. Veterana e mestre em sua arte, o que Lygia faz de melhor é capturar momentos. Não espere dela o formato usual de começo-meio-e-fim de se contar uma história. Aqui não há espaço para a didática dos contos de fada: o leitor é jogado em situações já em andamento e, imerso pela narração acurada, infere o quanto consegue do contexto. Nisso reside parte da beleza da escrita de LFT – em cada conto, esconde-se um romance.
Só o toque de uma grande autora consegue tornar das situações – muitas vezes, banais – de Antes do Baile Verde narrativas tão envolventes. A precisão das descrições de Lygia contribuem para esse fenômeno. A escritora domina a velha estratégia de mostrar, não falar (show, don’t tell): nada é explicitado; são os detalhes da descrição que pintam os retratos (sempre fotográficos) na mente do leitor.
A obra é ainda de uma sensibilidade ímpar. Contos como A Chave oferecem visões raio-x do psicológico de seus protagonistas. Sobre esse texto em específico, Carlos Drummond de Andrade comentou: “[…] uma das histórias mais legais, intitulada ‘A Chave’, em que por trás da chave há um casal velho-com-moça e uma outra mulher na sombra, tudo expresso de maneira tão sutil que pega as mínimas ondulações do pensamento do homem“. A simples cena narrada (de um homem esperando sua namorada se arrumar para um jantar) ganha novos significados ao conjurar memórias de amores passados e se transforma em um evento significativo para o desenvolvimento emocional da personagem.
No entanto, não é só de trivialidades que se constrói este livro. Em Venha Ver o Pôr do Sol (dos contos mais famosos da autora), uma decepção amorosa toma proporções dramáticas; Helga conta a vida de um brasileiro na Alemanha do Terceiro Reich, em uma saga quase cinematográfica de amor, dinheiro e traição. Lygia transita do drama familiar a partir da perspectiva de uma criança em O Menino aos grandes temas sugeridos em Natal na Barca, sem dificuldades nem perdas.
Este ano, a autora foi a escolha unânime da União Brasileira de Escritores (UBE) para representar o País nas indicações ao prêmio Nobel de Literatura. Durval de Noronha Goyos, presidente da UBE, foi categórico: “Lygia é a maior escritora brasileira viva e a qualidade de sua produção literária é inquestionável”. Tivesse ela sido premiada no lugar de Bob Dylan, seria o primeiro prêmio Nobel concedido a uma brasileira, além da primeira vez que mulheres são premiadas com o Nobel da Literatura por dois anos consecutivos. Enquanto Dylan é um artista já consagrado internacionalmente, a premiação seria uma plataforma para a arte de Telles; do Brasil ao resto do mundo. A carreira e o merecimento do cantor e compositor estadunidense estão fora de questão. Contudo, o que se abre para questionamento é o papel do Nobel na cena literária. Para o público estrangeiro, Antes do Baile Verde seria uma boa porta de entrada à obra de LFT, reunindo contos dentre seus mais maduros e bem-realizados. Só falta mesmo o reconhecimento.
Por Fredy Alexandrakis
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