Se fosse preciso resumir Flores, de Afonso Cruz (Companhia das Letras, 2016) em uma única frase, ela seria: uma história velha contada de uma maneira nova. O romance aborda o clássico dilema do homem de meia idade que, após passar por um incidente que remexe sua vida – no caso do protagonista, a perda de seu pai – entra num processo de questionamento da rotina na qual acabou por se acomodar sem sequer perceber: seu casamento não é mais o mesmo, ele trai sua esposa, está insatisfeito com a barriga acumulada ao longo dos anos e se sente estagnado.
O twist entra em como essa autorreflexão acaba se realizando: numa mistura de solidariedade com vontade de escapar de sua própria vida, o protagonista se dispõe a ajudar um vizinho idoso, Manuel Ulme, que sofre com uma doença degenerativa que enfraquece sua memória, a recuperar uma vida que lhe escapa mais a cada dia. Ele começa uma investigação sobre o vizinho, tentando reconstruir sua identidade por meio das muitas percepções que as pessoas que passaram por sua vida tinham dele e acabando, assim, com um retrato muito mais repleto de nuances do que a visão que o próprio Manuel teria dele e de sua história de vida.
A grande beleza do livro está em sua construção narrativa, principalmente nos artifícios linguísticos usados para amarrar uma história que é, essencialmente, uma coleção de recordações – por mais que exista uma progressão temporal na história, a nossa percepção do tempo é um tanto fragmentada. E é aí que entram as flores do título, que aparecem em diferentes instâncias (no sobrenome do primeiro amor de Manuel, num pedido de desculpas) para amarrar a narrativa, aludindo a diferentes significados que atribuímos a elas: a doçura; a calma; a quebra da rotina; e, principalmente, o crescimento, florescer. Dentro e fora desse tema, o talento do autor em traçar metáforas simples e belas para descrever o conflito interno das personagens, principalmente a batalha para reencontrar o significado numa vida que parece fossilizada pela rotina, acaba sendo o aspecto mais brilhante do livro.
O que pouco se fala sobre narrativas dentro dessa temática – e que este livro deixa bem claro – é que elas são, em sua esmagadora maioria, histórias masculinas. Isso não é, por si só, um problema. Mas é impossível não imaginar a diferença de recepção que certas ações da personagem principal, justificadas com base nessa sua desconexão com a “rotina”, teriam caso fossem feitas por uma mulher: em um ponto da narrativa, sua esposa, Clarisse, demonstra preocupação sobre o comportamento da filha deles. A reação dele é um silêncio, seguida de uma observação mental sobre como “a vida não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias”. Teria uma mulher esse mesmo “direito” de se distanciar do bem-estar dos filhos (e de outros aspectos da vida doméstica, como o protagonista também faz) e tratá-los como apenas “uma parte da rotina”? Acredito que não. Chega a ser engraçado ver o comportamento negligente do protagonista em relação a sua vida – especialmente às mulheres – intercalado por reflexões muitas vezes repetitivas sobre como viver a vida de modo mais verdadeiro.
A mensagem que o livro pretende nos deixar é também um desafio: viva o presente de modo completo, esteja ciente do que acontece ao seu redor, aproveite. A frase dita em diversos momentos por Sr. Ulme, “entremos mais dentro da espessura”, completa-se com aquela dita pelo protagonista mais tarde na narrativa: “ninguém se renderá. Resistiremos”. Após uma trajetória que envolve o divórcio e a falha de outro relacionamento, acabamos com um protagonista que talvez tenha passado a perceber que a grande parte dos aspectos da sua vida que lhe desagradam são uma consequência direta de suas próprias ações – ou melhor, a falta delas.
Por Bárbara Reis
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