Por Gabriel Albuquerque (gabrielalbuquerque@usp.br)
No final de setembro deste ano, uma das trilogias mais famosas do cinema voltou ao catálogo da Netflix. O Poderoso Chefão Pt. I (The Godfather, 1972) retornou ao serviço de streaming após um curto período de tempo fora e trouxe consigo O Poderoso Chefão Pt. 2 (The Godfather Pt. 2, 1974), além da nova versão do terceiro filme, O Poderoso Chefão: A Morte de Michael Corleone (The Godfather Coda: The Death of Michael Corleone, 2020).
A obra-prima de Francis Ford Coppola sempre foi vista como referência de qualidade quando se trata de filmes de máfia. Isso se deve, principalmente, ao seu impacto cultural, sendo referenciada dentro e fora do cinema até os dias de hoje. Porém, o gênero marcado pelas armas, ternos finos e atividades ilegais surgiu bem antes do lançamento do clássico estrelado por Marlon Brando. Ele está presente na história do cinema desde o início do século 20, quando os filmes ainda eram mudos.
O surgimento dos filmes de máfia
Inicialmente, o tema era abordado em curtas-metragens, formato muito popular no início dos anos 1920. O mais antigo registro que existe de um filme do gênero é The Black Hand (1906), que apresenta dois gângsters ítalo-americanos que chantageiam um açougueiro do bairro após sequestrarem sua filha e ameaçarem destruir seu estabelecimento. Uma premissa simples, ainda na época do cinema mudo e muito longe do cinema colorido, mas que foi o pontapé inicial para um dos gêneros que iria se tornar um fenômeno cultural.
Outro curta-metragem que ajudou a apresentar os filmes de máfia ao mundo foi Os Mosqueteiros de Pig Alley (The Musketeers of Pig Alley, 1912). Na obra, um músico tem sua carteira roubada por um gângster enquanto voltava de uma viagem. Mais tarde, naquele dia, a esposa do músico é salva de um envenenamento pelo mesmo criminoso que roubou a carteira. Como forma de retribuir, o protagonista esconde o ladrão da polícia em seu apartamento. Dirigido por D. W. Griffith, o filme é considerado um clássico do cinema americano.

o cinema [Imagem: Reprodução/The Movie Database]
A consolidação do gênero e a ‘Era de Ouro’
Essas produções foram as precursoras do gênero que alcançaria sua “Era de Ouro” entre os anos 20 e 40, no auge da Lei Seca nos Estados Unidos. Na época, a fabricação, transporte e venda de bebidas alcoólicas para consumo era proibida em todo o país, resultando em sua comercialização clandestina e na ascensão de criminosos como Al Capone, considerado um dos maiores mafiosos da história.
Dentre os lançamentos do período, destacam-se Amor e Sangue (Underworld, 1927), do diretor Josef von Sternberg, e A Lei dos Fortes (The Racket, 1928), de Lewis Milestone. Ambos são longas-metragens e têm histórias muito mais extensas e desenvolvidas quando comparados com seus antecessores. Scarface – A Vergonha de uma Nação (Scarface, 1932) também foi lançado na época e se consolidou como um grande clássico dessa Era de Ouro.

imposta pelo Código Hays [Imagem: Reprodução/The Movie Database]
Entretanto, os estúdios — principalmente a Warner Bros., que era referência no gênero — precisaram reinventar a forma de contar suas histórias a partir de 1934. Com a criação do Código Hays, foi estabelecido um conjunto de normas moralistas criadas pela Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América (MPPDA), que restringia o que poderia ser apresentado ou não nos filmes dos EUA. Dentre os tópicos considerados sensíveis pela MPPDA estavam o tráfico de drogas, a violência explícita, a apologia ao crime e muitos outros conteúdos abordados nesse tipo de obra.
Para não ferir o Código Hays, os estúdios começaram a apresentar seus “filmes de máfia” pela perspectiva dos policiais. Beco Sem Saída (Dead End, 1937), do diretor William Wyler, e Anjos da Cara Suja (Angels with Dirty Faces, 1938), de Michael Curtiz, são dois exemplos que retratam a forma que os estúdios encontraram para driblar a censura. Entretanto, a criatividade não foi suficiente para manter o gênero vivo. Com o início da Segunda Guerra Mundial, ele perdeu sua popularidade e permaneceu em baixa temporada por quase uma década.

se reinventar para driblar a lei [Imagem: Reprodução/The Movie Database]
Nova Hollywood e o nascimento de estrelas
Os filmes de máfia voltaram a ter certa relevância no final da década de 40, com alguns clássicos sendo lançados na mesma época. Tóquio Violenta (Tōkyō nagare-sha, 1966) foi um dos primeiros longas fora do eixo estadunidense que fizeram sucesso mundialmente, apresentando uma nova perspectiva do que é uma máfia.

A partir de 1967, diversos diretores e estúdios americanos começaram a descumprir as normas estabelecidas pelo Código Hays, o que abriu margem para o gênero voltar ao seu topo. O filme Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, 1967) marcou a sua história com a violência explícita, que era censurada até aquele momento. Ele é considerado por muitos como inaugurador da Nova Hollywood, um movimento cinematográfico muito mais próximo do cinema europeu e com pautas mais críticas e incisivas à sociedade americana.
Desde os anos 1970, sem as amarras da censura, surgem grandes nomes da sétima-arte mundial, como Francis Ford Coppola com O Poderoso Chefão Pt. I e Martin Scorsese com Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973). Brian de Palma também foi um dos diretores que surgiu durante o período, mas a partir da década de 1980. Dentre suas obras de destaque estão Os Intocáveis (The Untouchables, 1987), que conta a história de Al Capone, e Scarface (Scarface, 1983), um remake do filme original lançado em 1932.

a romantizar as histórias [Reprodução/The Movie Database]
Com o passar do tempo, a ideia de mafiosos e gângsters com ternos finos começou a ser tratada como algo antigo. Consequentemente, os filmes do gênero também começaram a apresentar a máfia como algo do passado a ser homenageado. Quentin Tarantino faz isso com maestria em Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992), considerado o primeiro dos nove principais filmes do cineasta.
Os filmes de máfia hoje e seus impactos no cinema
Mesmo longe de seus tempos de glória, o gênero permanece como um dos mais populares, principalmente entre os cinéfilos mais assíduos. Dentre os filmes lançados nos últimos anos, O Irlandês (The Irishman, 2019) recebeu diversas indicações ao Oscar, incluindo a de Melhor Filme. Outro destaque é O Alfaiate (The Outfit, 2022), produzido pela Netflix.

Oscar em 2020 [Imagem: Reprodução/The Movie Database]
É inegável que os filmes de máfia são patrimônios da história cinematográfica, mas toda essa popularidade não seria possível sem um amplo apoio da estrutura americana para divulgar suas produções. Em entrevista ao Cinéfilos, o professor Márcio Rodrigo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), comentou sobre o assunto:
“Os Estados Unidos têm não apenas uma grande produção fordista, mas um grande esquema de distribuição global para outros países”, afirma. “Eles fazem filmes universalistas — hoje chamados de ‘clássicos’ — e contam histórias que, na verdade, geram identificação e proximidade, conexão com plateias do mundo inteiro.”
O gênero de máfia também pode ser encontrado em outros contextos fora da realidade americana e ocidental. “Na contemporaneidade, podemos pensar em filmes como Kill Bill [Volume 1 e 2], que indiretamente tratam da questão da máfia a partir de uma variação que não é a italiana”, comenta o professor. “Você também pode ter um filme de ‘máfia’ no Brasil, como Cidade de Deus (2002) ou Tropa de Elite (2007), que falam de facções que influenciam na vida e na cultura de uma cidade como o Rio de Janeiro, especialmente em bairros periféricos.”
Na visão de Rodrigo, os filmes de máfia têm parte de sua popularidade graças ao interesse do público em obras que tratam de crime, como visto na queda da popularidade do gênero durante a censura imposta aos estúdios. Aproveitando a parcela do público que se interessa por esse tipo de trama, a indústria cinematográfica americana utiliza suas obras como soft power para propagar sua influência em outros países, não se limitando aos filmes de máfia, mas também se estendendo aos outros gêneros do cinema.
Em entrevista ao Cinéfilos, Vitor Bündchen, pesquisador do cinema norte-americano, apresenta alguns fatores presentes nas narrativas dos filmes que fazem o público se interessar pelo gênero e reforça a ideia de que as representações da criminalidade são atrativas para os telespectadores. “O gênero mafioso oferece ao público o que ele mais busca: drama, poder, conflito e moralidade ambígua, tudo embalado por uma estética irresistível.”
