Imagem: Audiovisual – Jornalismo Júnior
Em um dia comum, uma mulher surge misteriosamente na cidade de Dooling, Geórgia, e mata dois traficantes de drogas em um trailer com as próprias mãos. Lila Norcross, a xerife da cidade, encontra essa mulher e a envia para o presídio feminino crente de que a prisioneira é um tanto maluca, afinal, pareceu a Lila que a misteriosa e bela jovem, que se autonomeou como Eva Black, queria ser presa.
No mesmo dia em que Eva surge em Dooling, as mulheres do mundo começam a ser envoltas em uma película esbranquiçada, semelhante a teias de aranha, após adormecerem. Mas, isso não é o mais grave, afinal, é só retirar o casulo extraordinário do corpo das mulheres, não é? Não é bem assim. Se o casulo for rompido, as mulheres tornam-se extremamente violentas, capazes de matar até mesmo as pessoas mais próximas a elas. Contudo, a misteriosa Evie Black dorme e acorda todos os dias no presídio feminino, sem que nenhum organismo estranho a cubra. O psiquiatra do local, Clint Norcross, acredita que mais do que uma psicótica, Black é a chave da misteriosa doença do sono, intitulada como “Aurora” em homenagem à princesa dos contos de fada que dorme após picar o dedo em uma roca, que atinge todas as mulheres do mundo.
Narrado em terceira pessoa, Belas Adormecidas (Suma de Letras, 2017) foi escrito a duas mãos com a parceria inédita do já renomado escritor Stephen King e seu filho, Owen King. Contudo, durante a leitura, não se percebe que há dois escritores, pois o ritmo é fluido e não há mudanças bruscas do humor da história, por exemplo. Outra característica interessante do livro é que ele foi escrito com a intercalagem de momentos dos personagens que aparecem durante a narrativa, ou seja, podemos visualizar o que cada personagem está fazendo a cada subcapítulo do livro, tornando a leitura mais dinâmica e a experiência mais completa. No final, o leitor nem perceberá que transpôs as 722 páginas do romance.
Belas Adormecidas é, de fato, um bom livro de suspense-terror. Dentro dessa categoria, não é um dos melhores, entretanto. Há cenas com descrições interessantes do grotesco de cadáveres e de assassinatos cometidos aos montes durante o livro. Quando Evie Black age de maneira sobrenatural, invocando ratos para atacar aqueles que a incomodam, ou quando ela expõe o pensamento daqueles que a visitam em sua cela, o suspense característico das obras de King surge com potência. Mas, essas cenas não são constantes dentro da história. Belas Adormecidas é mais do que um livro do gênero suspense. O horror que ele carrega é um horror real: o machismo pungente na sociedade do século XXI.
O livro começa com a letra da música “Born a Woman” escrita por Martha Sharp e interpretada pela cantora norte-americana Sandy Posey. A canção está presente no álbum intitulado “Girl Only” em que o “o” da segunda palavra foi substituído pelo símbolo do feminino, que também está associado à luta feminista no mundo. A música diz que não importa quais são as características de alguém (“It makes no difference if you’re rich or poor – Or if you’re smart or dumb”), se esse alguém nasceu mulher, ela estará sempre abaixo dos homens e será tratada como se fosse a pior coisa que existe nesse “velho mundo” (“And if you’re born a woman – You’re born to be hurt – You’re born to be stepped on, lied to, cheated on – And treated like dirt”).
Em Belas Adormecidas, o leitor se depara com várias situações de machismo que vão desde comentários naturalizados como “Eu pareço uma mulherzinha”, quando o filho de Lila e Clint Norcross é coagido a se esconder durante uma situação de conflito, até abuso sexual das detentas do presídio feminino de Dooling por um agente que enxerga a situação como provocada pelas mulheres que agem para incitá-lo. Dooling é um microcosmo que condensa a realidade do mundo em que os homens inibem a liberdade das mulheres, não aceitam que elas possuam cargos de ação (como Lila Norcross ser a delegada da cidade, por exemplo) e as sexualizam constantemente.
Quando as mulheres ficam envoltas nos casulos, contudo, o mundo como era conhecido desmorona e os homens se veem perdidos. Então eles agem violentamente para tentar consertar tudo. Eles queimam os casulos com medo de que outras mulheres “se contaminem” e que outros homens sejam mortos ao rompê-los. Eles organizam uma batalha com inúmeros mortos para retirar Eva Black do presídio. E a questão que fica é: como ficaria o mundo se, de fato, as mulheres desaparecessem dele? A sociedade morreria em décadas ou dias?
Belas Adormecidas é a exposição do mundo machista escrita por homens. A reflexão que ele propõe não é para as mulheres, que tem consciência do que enfrentam diariamente nessa sociedade, mas para os homens. Será que as mulheres são indivíduos tão desprezíveis e passíveis de objetificação? Será que, se ocorresse o contrário, elas conseguiriam sobreviver de maneira mais harmoniosa e ativa do que os homens? O livro de King pai e King filho foi eficiente na proposta de reflexão, mesmo com falhas finais ao colocar como uma loucura um mundo paralelo somente feminino. Mas, mesmo assim, merece ser lido. Não por quem busca sentir medo e tensão, mas por quem quer uma leitura dinâmica e que não deixa de propor pensar sobre os problemas que ainda habitam o mundo.
Por Bruna Diseró
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