Quando pensamos na Itália, talvez a primeira coisa que vem à nossa cabeça seja pizza, macarrão, moda e italianos com uma vida regada de fartura e regalias que o país oferece. Esta, porém, não é uma realidade vivida por todos que moram na Itália. O país conhecido pela gastronomia e pela vivacidade de sua população possui uma desigualdade econômica imensa que assola diversas regiões, desde centros até cidades menores.
A disparidade econômica entre a população tem uma origem histórica ligada, principalmente, a um período pós unificação. Neste momento, um processo de industrialização ocorreu de maneira massiva no norte da Itália, enquanto que o Sul ainda dependia das atividades agrárias. “Tem uns teóricos que estudam, aquilo que a gente chama na Itália de questione meridionale, que dizem que o grande problema é geográfico, porque não existia uma diferença econômica, social muito grande até a unificação. Tinha, é claro, mas existia pobreza no norte da Itália, assim como existia riqueza, existia pobreza e no sul idem. Essa diferença se exacerba, sobretudo, neste período de unificação. O norte da Itália está muito mais perto dos grandes centros europeus, enquanto que o sul está completamente isolado.” como diz Adriana Iozzi Klein, Professora Doutora de Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
Vale ressaltar, portanto, que as desigualdades na Itália não se resumem a questões regionais entre o norte e o sul. É muito comum pessoas relacionarem diretamente o norte com a riqueza e o sul com a pobreza, porém trata-se de uma visão até mesmo preconceituosa. Ambas as regiões possuem grupos sociais que vivem em situação de extrema vulnerabilidade, ao mesmo tempo, que possuem classes que detêm grande quantidade de dinheiro. Resumir estas regiões a situações econômicas, de certo modo, ignora toda a cultura e a população que vive nelas.
Uma forma que os italianos acharam de expor e lutar contra esta desigualdade muito presente no país foi através da arte. Esse movimento se intensificou no período pós guerra, principalmente, por meio do cinema e dos diretores neorrealistas.
Neorrealismo
A história contemporânea da Itália, assim como o período de unificação, foi também marcada por crises e guerras. Durante essa época, a violência, a desigualdade e a miséria aumentaram de maneira drástica. De acordo com Adriana, em um período de décadas a Itália passou por 6 guerras, incluindo a Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial, guerras coloniais e a Guerra civil, entre os Fascistas e os Partigiani. Portanto, após a década de 40, com o fim da Segunda Guerra Mundial, conforme Adriana, a Itália se encontra destruída e extremamente pobre.
É neste contexto que surge o Neorrealismo, movimento cinematográfico que teve seu início na década de 1940, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Adriana diz que foi uma corrente artística atípica na história: “O Neorrealismo, diferentemente do que acontece com os outros movimentos artísticos que se manifestam muitas vezes na pintura, na arquitetura, nasce no cinema. É uma coisa impressionante isso, porque ele não é uma escola. O Ítalo Calvino vai dizer que o neorrealismo é conjunto de vozes, porque eles eram tão diferentes, mas eles têm um ponto em comum: a retomada do realismo”.
Durante o regime de Benito Mussolini, a censura às produções artísticas eram recorrentes. A produção cinematográfica consistia em apenas obras ligadas ao regime ou que exaltasse a Itália. O Neorealismo, portanto, veio com o objetivo de expor a realidade nua e crua da Itália, após 20 anos de guerra, silêncio, violência, miséria e desigualdade que a população enfrentou. Além disso, uma das mais importantes críticas que o movimento traz é à burguesia. Criticar esta elite que se enriquecia cada vez mais, enquanto a população se encontrava na miséria, foi uma forma de tomar uma posição política de resistência. Geralmente, o movimento neorrealista representava a burguesia de maneira decadente e amoral, muito diferente do “cidadão de bem” que o regime facista exaltava.
A partir do Neorrealismo, o cinema italiano ganhou espaço no cenário mundial e foi muito ovacionado pela crítica. Nomes como Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Federico Fellini se tornaram referência no meio da sétima arte e influenciam as produções até os dias de hoje. Filmes como E la nave va (1983) e A Doce Vida (1960) são exemplos de obras deste movimento italiano consideradas grandes clássicos.
Cinema contemporâneo italiano
A tendência de representação da realidade nas produções cinematográficas italianas ainda está muito presente na contemporaneidade. A influência do Neorrealismo fica muito evidente no cinema atual, na medida que o cotidiano do italiano é um tema recorrente e muito explorado. Essa relação entre os filmes antigos e atuais se torna notória ao analisar alguns filmes e diretores contemporâneos.
Paolo Sorrentino, por exemplo, é um diretor italiano que bebe muito da fonte do realismo e do cotidiano. O filme A Grande Beleza, uma de suas produções, conta a história de Jep Gambardella (Toni Servillo) escritor romano que vive uma vida agitada, porém, ao mesmo tempo solitária. O longa-metragem ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2014 relata de forma minuciosa a vida da elite de Roma pautada em festas, encontros de gala, jantares e no convívio com pessoas poderosas. O cotidiano desta burguesia é retratado de maneira faustosa, tornando-se quase uma sátira de uma realidade vivida por poucos na Itália.
Outro filme de Sorrentino é A Mão de Deus (La mano di dio, 2021). Ele conta a história de Fábio (Filippo Scotti), jovem garoto morador de Nápoles que ama futebol e, principalmente, Maradona. O enredo acompanha as descobertas da juventude por parte do personagem principal e as dificuldades que a vida pode trazer. Além disso, o filme retrata de maneira excelente o cotidiano de um cidadão classe média de Nápoles, na medida que apresenta as relações familiares, a importância do futebol para cidade, as produções artísticas e a cultura de bairro, o que aproxima e contextualiza o espectador à realidade vivida pelos personagens.
Em contraste a estes dois filmes, Gomorra (2008), inspirado no romance de Roberto Saviano e dirigido por Matteo Garrone, apresenta uma faceta da Itália completamente diferente. Ambientado em Nápoles, o filme retrata uma realidade dura de uma população com baixo poder econômico. O enredo narra quatro histórias diferentes que, de alguma forma, estabelecem relações com o crime organizado. A violência, o tráfico de drogas e a pobreza são “jogadas na cara” do espectador, quase que de maneira documental. A realidade explícita, portanto, choca e expõe a vida terrível levada por alguns napolitanos. Por isso, de acordo com Adriana, Gomorra faz parte do movimento de “cinema denúncia”.
Outro diretor que explora a realidade italiana é Luca Guadagnino. Em seus filmes, porém, ele representa uma elite que se distingue da realidade social vivida no resto da Itália. Em Um Sonho de Amor (Io Sono L’Amore, 2009), por exemplo, Emma Recchi (Tilda Swinton) é esposa do herdeiro de uma grande fábrica de tecidos em Milão. O longa-metragem relata o cotidiano da família que esbanja riqueza. O poder econômico deles é evidenciado pela grande mansão em que moram, pelo número de empregados, pelas viagens que fazem, etc. Apesar do enredo focar na relação de adultério que Emma Recchi tem com Antonio Biscaglia (Edoardo Gabbriellini), o estilo de vida burguês industrial apresentado é de grande importância ao desenvolver do filme.
Se você quiser saber mais sobre estas realidades contemporâneas não muito conhecidas da Itália, os filmes apresentados irão mostrá-las de maneira excepcional. Através de uma sutileza e fidelidade, estas obras conseguem te transportar até o país localizado no mediterrâneo e apresentam histórias muito instigantes.