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As memórias quase póstumas de Paulo Machado de Carvalho

A história de vida de um símbolo paulistano   Por Luccas Nunes (luccas.nunes@usp.br) e Renato Navarro (renato.navarro@usp.br)   Gostaria de ouvir um velho saudoso? Nasci em 27 de abril de 1940, e ali, onde vim ao mundo, próximo ao centro da cidade de São Paulo, foi também onde cresci e me tornei o ilustre habitante …

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A história de vida de um símbolo paulistano

 

Por Luccas Nunes (luccas.nunes@usp.br) e Renato Navarro (renato.navarro@usp.br)

 

Gostaria de ouvir um velho saudoso?

Nasci em 27 de abril de 1940, e ali, onde vim ao mundo, próximo ao centro da cidade de São Paulo, foi também onde cresci e me tornei o ilustre habitante que sou hoje, no alto de meus 77 anos de história. É, caro leitor, estou velho… Mas todo esse tempo de vida me permitiu acumular uma quantidade imensa de experiências, e, agora que parece que meu tempo como “habitante da cidade” está acabando, soa como um momento de rara oportunidade para que eu passe adiante, neste texto, a minha vivência como paulistano convicto que sou. Prazer, meu nome é Paulo Machado de Carvalho, mas pode me chamar de Pacaembu.

 

Nascimento, o fazer político no meio desportivo

Quando eu nasci era 1940, e acabara de eclodir a Segunda Guerra Mundial. De um lado estavam os Aliados, com EUA, União Soviética e Inglaterra; do outro o Eixo, com Japão, Itália e Alemanha. Mas eu, como brasileiro médio que era, não me preocupava com a guerra pois sabia que ela não viria até mim.

Mas não se engane, nem por isso que sou alheio a assuntos políticos – nasci por causa disso, aliás! O futebol brasileiro vinha mal das pernas nas décadas de 1920 e 1930, principalmente nas Copas do Mundo, que hoje tanto gostamos. Esse desempenho fraco ia contra a maré nacionalista do Estado Novo do então presidente, Getúlio Vargas. Para mudar esse quadro, fortalecer o esporte nacional e enaltecer a nossa grandeza tupiniquim no mundo afora, meu projeto ganhou vida.

Claro que eu me senti honrado. O bairro onde nasci era um grande brejo até os anos 1910 — aposto que você não sabia que Pacaembu significa “terras alagadas” em tupi-guarani —, e por outros trinta anos fui um reles terreno numa área residencial. Agora ali estava eu, sendo escolhido como alicerce do desporto nacional. Que sonho!

Para enaltecer a nossa grandeza mundo afora, meu projeto ganhou vida. (Reprodução/Arquivo Lance!)

Veja bem, não tenha uma visão equivocada de mim, leitor. Não é por isso que eu gostava do Getúlio, não! Sempre me pus contra a censura, e por isso não poderia apoiar um déspota, por mais esclarecido que fosse. O pessoal daqui de São Paulo também não gostava dele não, mas por outros motivos: ele derrubou o presidente paulista Washington Luís no golpe de 1930, e também derrotou a Revolução de 1932.

Logo no meu primeiro dia de vida, já o recebi com milhares de vaias dos mais de 50 mil que vieram me visitar. Ah, lembro-me agora de outra prova de que não sou alheio a assuntos políticos. É o fato que veio a seguir, envolvendo o time de futebol do São Paulo. A delegação do clube desfilou com sua bandeira, que orgulhosamente, ostentava as cores do estado paulista. Como isso foi proibido pela censura depois da – reprimida – Revolução Constitucionalista, eu e meus convidados, em ato de resistência aplaudimos vigorosamente o desfile. Que honra participar desse momento. O esporte sendo usado para furar a censura. Que orgulho!

No dia seguinte abri alas para o nosso esporte bretão, fui palco de dois jogos e 14 gols. Que dia! Primeiro foi o Palestra Itália – atual Palmeiras – que venceu o Coritiba por 6 a 2; depois veio o Corinthians e derrotou o Atlético Mineiro por 4 a 2. Triunfo do futebol de minha terra! Na semana seguinte, no dia 4 de maio, o Palestra Itália bateu o Corinthians pelo apertado placar de 2 a 1 e sagrou-se meu primeiro campeão, levantando a Taça Cidade de São Paulo. E assim, com três jogos, 17 gols e uma resistência à censura, completei minha primeira semana de vida.

 

Dos primeiros anos para além do futebol

Hoje, caro leitor, o tempo já me fez encolhido e menos imponente, mas no meu nascimento eu era bem maior – pelo menos na capacidade de acolher os visitantes. Conseguia abrigar quase o dobro dos cerca de 37 mil que comporto atualmente. Lembro como se fosse hoje… Foi em 1942, quando eu já havia completado dois anos, que bati meu recorde de maior público! Mais de 71 mil pessoas vieram até mim, na Praça Charles Miller, para prestigiar um dos maiores e mais tradicionais clássicos paulistas: Corinthians contra São Paulo!

Eu sentia minha veias pulsando no ritmo das arquibancadas a cada grito e a cada pulo da torcida; sentia arrepios a cada gol e a cada celebração. O jogo terminou em um espetacular 3 a 3. Um dos mais incríveis empates da história do futebol paulista, e sem dúvida o mais vencedor que eu já presenciei. Que bela infância teria eu, pensei, enquanto meus queridos visitantes, que não sabiam que haviam acabado de fazer história, voltavam para suas casas.

Como brasileiro que sou, claro que amo futebol de toda a alma – como você já deve ter percebido, não é mesmo? Mas nem só de futebol vive o homem. Sou apaixonado por música, e pude assistir a diversos concertos e shows, das mais diferentes bandas, grupos e orquestras.

Antigamente eu tinha uma concha acústica para eles, sabe? Ficava ali, onde hoje fica o Tobogã. Era ótimo dar uma relaxada da tensão e da bagunça dos jogos ao som de grandes músicos, mas não era algo que acontecia frequentemente. Pensando bem, é natural. E fui criado para servir de base aos esportes. A cultura, quis o destino, nunca teve o primeiro plano em minha história.

Jogo Suécia x Uruguai na Copa de 1950, realizado no Pacaembu (Reprodução/Arquivo Lance!)

Talvez por isso, por mais que eu amasse os eventos culturais, era nos esportivos que eu brilhava! Sediei a Copa do Mundo de 1950, e vi de pertinho a seleção brasileira de craques como Baltazar e Ademir, que não perdeu em minha casa, não! Já o meu primo carioca não pode dizer o mesmo… Enfim, não voltemos a esse momento.

Como não sou só do futebol, também fui anfitrião dos jogos Pan-Americanos de 1963. Eu abri as portas para os atletas de todo o continente, presenciei suas competições e fechei as portas às suas costas quando tomaram o rumo de volta às suas casas.

Muita gente nem faz ideia, mas minhas quadras, pistas e piscinas também já foram palco de grandes esportistas! Já vi por aqui campeões olímpicos de atletismo como Emil Zatopeck e Adhemar Ferreira da Silva, assisti grandes duelos de boxe envolvendo Atílio Lofredo e Antônio Zumbano, e vi nascerem no complexo esportivo, aqui atrás do Tobogã, as brilhantes carreiras de Éder Jofre e Maria Esther Bueno. Aliás, a Maria Esther ganhou até uma estátua em sua homenagem!

Esses certamente foram momentos mágicos e que jamais esquecerei, mas seguirei, para evitar que fique preso no meu saudosismo agridoce. Direi apenas que, embora meu destaque certamente tenha sido o futebol, meus primeiros anos foram para muito além dele, e sou muito feliz por isso.

 

Das mudanças que a vida adulta traz

Em 1969 eu completava 29 anos. Foi um ano especial. Em 20 de julho o homem conquistou a lua e ultrapassou a fronteira final entre nossa rocha espacial flutuante e o espaço. Pouco menos de 50 dias depois, em 6 de setembro do mesmo ano, na gestão do então prefeito (e meu xará) Paulo Maluf, tive minha tão amada concha acústica demolida. Foi então que ganhei o atual Tobogã, que tem capacidade para cerca de 10 mil pessoas. Senti que ali foi firmado que minha função era servir de casa a eventos esportivos, mas não fiquei triste: sabia que, cedo ou tarde, ainda voltaria a ser casa de cultura para além dos esportes.

O tobogã recém-inaugurado, em 1970 (Filipe Araújo/Lancepress)

Veja bem, leitor, vou ser sincero: como disse, sempre soube que voltaria a ver um grande show antes de ser abandonado à minha própria sorte, mas não achei que fosse demorar tanto. Depois de pequenos eventos, o primeiro grande show que presenciei depois da substituição da concha pelo Tobogã foi em 1988, quando a cantora Tina Turner passou pelo Brasil. A partir daí nomes conhecidos mundialmente passaram a me visitar, como o tenor Luciano Pavarotti, que emocionou milhares de pessoas com seu vozeirão em 1991, e o ex-Beatle Paul McCartney, que fez-me uma visita em 1993 e trouxe consigo uma legião de fãs que me preencheu de corpo e alma. A partir dali vi mais alguns espetáculos: o Monsters of Rock, em 1994, 1995 e 1996; AC/DC; Iron Maiden; Pearl Jam; Red Hot Chili Peppers; e até o Papa Bento XVI!

Ao lado, claro, dos eventos esportivos, os culturais fizeram dessa fase de minha vida meus anos dourados. Ah… saudosos anos 90.

 

A velhice, e com ela a queda

Eu estava felicíssimo. Recebia diversos jogos – principalmente do Corinthians, que por um desentendimento com a diretoria do São Paulo, deixou de mandar seus jogos no Morumbi e eu, claro, os acolhi – e alguns eventos. Todo ano a molecada da Copa São Paulo de Futebol Júnior me visitava no dia da final, sempre no feriado de aniversário da cidade, 25 de janeiro, uma festa. Tinha estruturas que atraíam visitantes, como o museu do futebol e visitas às arquibancadas. Estava mais vivo do que nunca, mas aí veio a Copa do Mundo…

O Corinthians, com ajuda do governo, começou a construção de seu estádio, o Itaquerão, que seria palco da abertura da Copa (quisera eu…), lá na zona leste e bem longe de mim. Depois de sua conclusão, em 2014, eu fui quase que completamente esquecido. Com os quatro grandes clubes de São Paulo tendo estádios próprios, e com opções de lugares mais viáveis para shows na cidade, pouca função me restava. Me encolhi à sombra do gigante que uma vez fora e passei a receber apenas os jogos da copinha, de jovens ainda da base, e do futebol amador, com algumas escassas partidas profissionais.

Deixei de ser protagonista e me tornei paisagem histórica. Foi o progresso, eu acho. Esse é, afinal, o ciclo da vida: nascer, crescer e perecer. O golpe final parece perto. Com a eleição do prefeito João Doria, ano passado, em 2016, foi determinado que eu não mais seria casa de espetáculos culturais. Eu voltara a minha função original dada por Vargas na ditadura do Estado Novo. Mas o pior mesmo é que estou sob risco de privatização. Imagine, eu, depois de velho, com 77 anos me tornando posse de algum empresário marajá! Ah, que morte. Se isso acontecer, creio que o Paulo Machado de Carvalho morrerá e dará lugar a algum João Doria ou Marcelo Odebrecht.

É meu fim como “habitante da cidade”. Lamento que tenha acabado, mas fico feliz por ter acontecido. Espero, leitor, que tenhas gostado da minha história e que possa carregar o legado daquilo que fui e não da sombra que hoje sou. Espero, na verdade, que esse não seja meu fim como temo, mas que eu possa ser, em ti, eternizado.

Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu,

Um velho saudoso.

27 de Setembro de 2017.

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