O texto abaixo faz parte de um novo projeto experimental da Jornalismo Júnior.
Por Gabrielle Torquato (gabrielletorquato17@usp.br) e Thaislane Xavier (thaislanexavier@usp.br)
25 de janeiro de 2019. Mais uma vez o Brasil parou e voltou seus olhos para Minas Gerais. Mais uma barragem da mineradora Vale se rompe. A primeira tragédia em Mariana, no dia 05 de novembro de 2015, chocou a todos. Acreditava-se que a lição havia sido aprendida, mas não foi.
Em 2015 foram 43,7 milhões de m³ de lama, cerca de 600 km de extensão, 19 mortos. A maior tragédia ambiental do país. Em 2019, 12,7 milhões de m³ de lama, 300 km de extensão e centenas de mortos e desaparecidos. Maior acidente trabalhista e humano já registrado no Brasil.
Duas catástrofes anunciadas, menos de 200 km separam as duas cidades que sediaram alguns dos momentos mais triste de nossa história. Duas sociedades destruídas, famílias desintegradas, ecossistemas inteiros mortos e uma empresa responsável.
A morte da mãe natureza
São centenas de quilômetros mortos por dejetos, a fauna e flora naturais da região destruídas pela passagem da lama provavelmente nunca mais voltarão a ser as mesmas. A lama que era segurada pelas barragens possui uma composição muito diferente do solo, matando plantas ali existentes, por falta de nutrientes ou por soterramento, e impedindo que às sementes que conseguem chegar germinem. Assim, se tem uma mudança drástica na flora, como explica Pedro Luiz Côrtes, professor da Universidade de São Paulo.
“Com isso, se tem menor disponibilidade de alimentos para animais da região. Então, os animais que sobreviveram vão migrar e a área fica desprovida de fauna” continua Côrtes. Esses animais, em especial os pássaros, são predadores naturais de mosquitos. Com a morte e migração deles a possibilidade de aumento de doenças transmitidas por esses insetos é enorme, trazendo ainda mais prejuízos para a sociedade que vive próxima a Brumadinho.
Outro grande problema do rompimento das barragens é a morte dos ecossistemas aquáticos por onde a lama passa. Rios ficam cheios de sedimentos e isso impede a oxigenação e a entrada de luz. A flora que existia no rio e ajudaria a alimentar os peixes morre por não conseguir fazer fotossíntese. Juntando isso à falta de oxigênio ocorre grande mortandade de peixes, e de todo o rio.
As dificuldades para os cursos d’água não param por aí. Muitas nascentes ficam soterradas e fontes de água deixam de existir. Além disso, devido à enorme quantidade de sedimentos e componentes químicos que ficavam depositados no fundo do rio voltam a integrá-lo com a chegada da lama, assim, o consumo humano daquela água não é indicado, podendo causar sérios problemas à saúde. “A composição dessa lama possui componentes químicos, mas o rio vem sendo utilizado e elementos químicos contaminantes que ficavam no fundo dele, com a chegada da lama, passam a contaminar a água”, explica Pedro.
No caso de Brumadinho, em especial, os rejeitos podem chegar ao Rio São Francisco, um dos mais importantes cursos d’água do Brasil e da América do Sul. “As telas que a Vale está colocando em algum momento vão ficar cheias de sedimentos, tem que se tirar essa tela e trocá-las. Assim, os sedimentos vão escorrer e continuar avançando para o rio”, diz Pedro. Antes de tirar as telas era necessário dragar toda a lama que está sendo contida, mas pela dificuldade que a empresa tem em colocar as telas “é possível ver que eles não têm condições de colocar um equipamento de dragagem”, continua.
A Hidrelétrica de Três Marias também é capaz de segurar uma parte dos dejetos, mas o lago dela vai ficar assoreado e com a chegada de chuvas os detritos passarão aos poucos até chegar ao Rio São Francisco.
A Vale possuía um relatório de agosto de 2018 que falava dos riscos daquela barragem ceder. Mas apenas o final, que considerava ela adequada para o uso, foi considerado, resultando em mais um rompimento. “Alguns locais da barragem possuíam o Fator de Segurança a Liquefação de 1.05 e 1.09, ou seja, muito próximo do limite e de colapsar. Era o caso de parar as operações que eram realizadas ali e avisar a população”, diz o professor.
Imagine que você está na praia e com areia em suas mãos dentro de um mar sem movimentos. Se suas mãos estão paradas, a areia continua no fundo, mas se as mãos começam a se mover, a areia anteriormente parada começa a se liquefazer e torna a água turva. É isso o que ocorre em barragens quando há muito líquido: os dejetos que deveriam estar no fundo começam a se misturar e isso cria um efeito cascata que culmina em um rompimento repentino.
Para evitar que isso ocorra, o ideal é colocar tubos para drenar esse líquido e tentar secar, deixando os rejeitos sólidos ao fundo. Mesmo quando se resolve que não vai mais utilizar uma barragem é necessário um cuidado muito grande. Ela demora muito tempo para que não se necessite de mais nenhuma manutenção e não tenha risco de queda.
“Pode ser que pelo fato da barragem de Brumadinho não ser utilizada desde 2015 não tenham dado a atenção necessária. E me espanta o fato de os consultores que assinaram o relatório serem experientes e assinarem algo com um fator de segurança tão baixo”, diz Pedro. Ou seja, era uma tragédia anunciada, que poderia ter sido impedida ou ter seus efeitos amenizados se não fosse tão negligenciada.
A lenta recuperação da população
Diferente do ocorrido em Mariana, a tragédia em Brumadinho teve um peso social ainda maior. Centenas de pessoas foram afetadas. Até o momento, o número de mortes chega a 157, e mais 182 continuam desaparecidas. É difícil analisar com certeza quais serão as consequências enfrentadas pela população, e no Brasil ainda não existem medidas públicas efetivas para esse tipo de situação.
A psicóloga Elaine Alves, especialista em recuperação pós-tragédia, explica: “É uma perda inesperada, bruta e violenta. É o pior tipo que existe. Chamamos isso de morte escancarada, porque ela é muito invasiva. É difícil se desligar do ocorrido quando isso é o foco de todos ao redor do mundo”.
É comum no meio usar-se do termo “mundo presumido”, quando é possível prever e planejar os próximos eventos da vida comum, como o próximo feriado, a próxima semana. O ser humano tende a fazer planos, mas no caso das vítimas de Brumadinho, há um desequilíbrio geral, porque ainda persiste o estado de desorientação. Tudo que era esperado perde o sentido de acontecer. “Você perde tudo, não só as pessoas. Sua casa, sua história, referências. Para alguns pode ser como se o passado não existisse”, explica Elaine.
Segundo a psicóloga, a população afetada passará por alguns estágios. Nos primeiros 30 dias é comum que haja ansiedade, dificuldade para dormir e até mesmo ataques de pânico. Não significa que essa pessoa esteja com um estresse pós-traumático, esse diagnóstico só poderá ser feito após algum tempo. “Elas vão precisar de acompanhamento, mas nem todas de tratamento psicológico ou psiquiátrico. É preciso que haja uma avaliação. Ninguém sai ileso de uma situação como essa, sempre terá alguma consequência e isso precisa ser levado em consideração”, conclui a especialista.
Um agravante para a situação da saúde mental pode ser a quantidade de pessoas que continuam desaparecidas. “É um fato para um luto complicado, porque é um ciclo que nunca se fecha. É importante que haja um ritual de despedida para que o processo de recuperação se inicie”, explica a psicóloga.
É um período complicado para as vítimas e que deve ser levado como prioridade do atual governo. É difícil se curar de uma tragédia como essa, e através de Mariana conseguimos perceber que nem sempre a reinclusão na sociedade acontece de forma fácil. Essas pessoas precisarão de acolhimento e de respostas jurídicas para um crime social e ambiental que nunca deveria ter acontecido novamente.