Por Catarina Martines (catarina.martines@usp.br)
Recebida com aplausos atrasados devido ao delay da tradução simultânea do mandarim, Jiang Xue defendeu a liberdade em suas falas. A jornalista chinesa fechou o primeiro dia de palestras do 9° Festival de Jornalismo da Revista piauí. A mesa foi conduzida pelas jornalistas Flávia Lima, da Folha de São Paulo, e Thaís Oyama, do jornal O Globo. O papel de resistência ocupado por Jiang, ao falar sobre a realidade chinesa, foi um dos temas centrais.
Logo no início, Flávia contextualizou a discussão ao citar que o tema do festival deste ano foi inspirado no livro Sparks: China ‘s Underground Historians and Their Battle for the Future (Oxford University Press, 2023), do jornalista norte-americano Ian Johnson. Nesta obra, Jiang Xue é uma das figuras centrais, uma vez que, o jornal chinês Sparks desempenhou um papel importante na construção de seu interesse em divulgar as contra-histórias de seu país.
Apesar de viver nos EUA, Jiang nunca deixou de falar sobre a realidade chinesa. Seu avô morreu durante o período da Grande Fome, fato que seu pai sempre fez questão de relembrar para toda a família. A jornalista cresceu com o desejo de entender mais sobre a morte precoce do avô, quem sustentava a casa e todos os familiares. Formada em Direito e Ciências Políticas, ela só conseguiu ir atrás dessa resposta ao se tornar jornalista independente.

‘Sim, eu sei que estou errado’
A repressão que o país asiático desempenha contra a imprensa torna difícil a publicação de qualquer texto que fale minimamente mal das políticas do governo, de acordo com a jornalista. Ela explica que as autoridades têm medo de que as críticas possam apontar para alguma falha ou deficiência do sistema político e, por isso, censuram os jornais/ veículos de comunicação.
Como profissional independente, Jiang podia falar sobre os temas que desejasse, algo que não era possível quando trabalhava na redação do jornal chinês Chinese Business View. “Era como se você tivesse uma cobra na sua cabeça, uma cobra que pode comer a sua liberdade”. Mesmo com suas produções sendo, por vezes, excluídas rapidamente das redes sociais em que eram publicadas, ela defende que dar continuidade às publicações tem seu valor, uma vez que deixa um rastro e mostra que a resistência está presente.
Em abril de 2020, a jornalista escreveu críticas às políticas chinesas de combate à pandemia de Covid-19 e logo foi alvo da censura, dessa vez mais forte do que antes. “Um dia, quando voltei para casa para cozinhar para minha mãe, quatro policiais chegaram. Não pude recusá-los, pois me levaram diretamente de casa para a delegacia para prestar depoimento”.
A fim de tentar driblar a censura imposta, Jiang explicou que a população tenta desenvolver formas para mostrar sua indignação contra o governo. Ela cita um exemplo de que nas redes sociais o uso de determinados emojis demonstram alguma insatisfação específica por parte dos usuários: “muitos símbolos apareceram, e símbolos foram usados para representar coisas, e todos sabiam o que eles significavam”.
Porém, ela alerta que do mesmo jeito que os civis encontram novas formas de se expressar, o próprio governo também aprende rápido e a repressão se torna quase inevitável. “A censura do governo é muito avançada e suas máquinas têm muitas maneiras de capturar informações”, explicou.
Para ela, um dos casos mais marcantes de repressão – que levou a uma onda de resistência – foi o do médico Li Wenliang, um dos primeiros profissionais a alertar sobre a pandemia. Após a sua declaração , o profissional da saúde foi obrigado pela polícia chinesa a mentir: “sim, eu sei que estou errado”. A frase foi transformada em uma música usada pela população como uma maneira de demonstrar insatisfação, de acordo com Jiang.

Memórias para o agora
Ao ser interrogada sobre o que o governo chinês temia, Jiang foi enfática ao dizer que o medo principal era contra a própria história e a verdade. Ela alertou que a dificuldade de um povo em aceitar o próprio passado só pode ser superada quando relembrada constantemente para, assim, as pessoas entenderem a sua mensagem.
Na China, eventos históricos como a Revolução Cultural, o Movimento Antidireitista e a supressão dos contra revolucionários não podem ser discutidos. No país tudo tem a sua versão oficial e, caso algum fato seja narrado sem respeitá-la, logo é tachado como uma ofensa contra o nacionalismo chinês. “Não acho que possamos simplesmente ignorar a história e deixá-la para trás ou simplesmente ter um controle oficial sobre este país ou sociedade”, a jornalista destacou.
“A dor sofrida por cada geração permanece desconhecida, não resolvida e não curada. Muitos dos problemas atuais da China estão relacionados a sua história, que não foi escrita, registrada ou confrontada.“
Jiang Xue
Ao contar sobre um empresário que projetou um slogan anticomunista em um prédio, Jiang enfatiza a grande força da população como resistência ao autoritarismo. “Quando usamos nossa consciência e sabedoria para lutar contra o sistema hoje, ele [o autoritarismo] está morto, mas nós estamos vivos”, comentou a jornalista.
Questionada por Thaís sobre o recente corte na Radio Free Asia, feito pelo governo de Donald Trump, a jornalista lamentou. Esse serviço é financiado pelos EUA e transmite notícias do ocidente para países asiáticos que sofrem com a repressão da imprensa. Jiang comentou que essa ação levou a comemoração do governo chinês, pois significava o fim da ameaça que o veículo representava.
[Imagem de capa: Regina Lemmi/Jornalismo Júnior]
