Por: Júlia Mayumi (juliasueyoshi@gmail.com)
Os humanos sempre buscaram compreender o que estava acima deles. As estrelas, a Lua, os cometas… A inveja das aves, que eram as mais próximas desse mundo desconhecido, chegou a tal ponto que foram construídas asas artificiais para que os humanos pudessem pelo menos fingir que sabiam como era voar. Cada vez mais alto, buscando conhecer os mistérios que se escondiam acima das nuvens.
Mas nem sempre o que está abaixo de nós fisicamente é inferior em outros aspectos. Após se encantar com os ares ao escrever Cinco Semanas em um Balão (Cinq semaines en ballon, 1863), Júlio Verne, sete anos depois, descobre o fantástico mundo debaixo d’água em Vinte Mil Léguas Submarinas (Vingt mille lieues sous les mers, 1870). Na narrativa, Capitão Nemo e sua tripulação percorrem os mais diversos cenários oceânicos, fazendo uma breve passagem pela Zona Abissal.
Localizada entre 3000 e 6000 metros de profundidade, a Zona Abissal ocupa cerca de dois terços da superfície do planeta. A luz solar não chega a essa região, e a baixa temperatura, aliada à alta pressão hidrostática, torna as condições de sobrevivência muito complexas. A Profa. Dra. Paola Dall´Occo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que a baixíssima oferta de alimentos fez com que os animais desenvolvessem características específicas. “A presença de boca muito ampla, grandes dentes e estômago extremamente expansível permite que algumas espécies se alimentem de presas muito maiores do que elas e ingiram grandes quantidades de alimento em uma só refeição”. Em relação à perpetuação da espécie, Paola explica que os indivíduos andam em pares ou grupos, mas também ocorre hermafroditismo com autofecundação, isto é, um único ser que possui ambos os órgãos sexuais e fecunda a si mesmo. Dessa forma, apenas sua presença garante a reprodução, e o animal não fica dependente de um parceiro.
Uma das características mais famosas do Reino Abissal é a bioluminescência, em que um ser vivo é capaz de produzir luz. A doutoranda do Instituto de Biociências da USP, Marina Fernandez, explica que o fenômeno ocorre dentro do organismo do animal, onde a enzima luciferase provoca uma reação química em que moléculas de luciferina liberam energia em forma de luz. Marina destaca que esse processo tem várias funções, como atrair presas, distrair ou afugentar predadores e encontrar parceiros para acasalamento.
A maior parte do alimento na zona abissal vêm das águas superficiais, mas há exceções – os ambientes quimiossintéticos, como as fontes hidrotermais. “Fontes hidrotermais ocorrem em grandes profundidades em locais de atividade tectônica e emitem fluidos com compostos de enxofre e metano. Bactérias quimioautotróficas utilizam esses compostos como fonte de energia, gerando a base para a formação de pequenos oásis de vida no fundo do mar”, explica Marina.
As imagens do Reino Abissal que circulam na mídia trazem, muitas vezes, animais gigantescos. Como isso é possível, considerando a escassez de alimentos? Marina afirma que tamanhos maiores têm vantagens adaptativas nesse tipo de ambiente: possibilitam maiores reservas energéticas, para que o animal possa ficar períodos mais longos sem se alimentar, além da eficiência metabólica ser maior em invertebrados de grandes proporções, pois o custo energético é mais baixo por unidade de massa — isso significa que a quantidade de energia gasta para cada quilo de seu peso é menor. Em contrapartida, animais pequenos também têm vez: em casos em que é necessário um maior número de organismos para uma reprodução viável, tamanhos reduzidos permitiriam a co-ocorrência de mais indivíduos da mesma espécie, aumentando as chances de cópula.
Humanos na zona abissal
Júlio Verne não foi o primeiro a tentar adivinhar o que há onde a luz do Sol não chega; desde a Antiguidade, mitos como o da Cidade Perdida de Atlântida já suscitavam questionamentos nas mentes dos homens. Aline Valek, autora do romance “As Águas-Vivas Não Sabem de Si” (Editora Rocco, 2016), apresenta uma hipótese para toda essa curiosidade: “deve-se ao mistério criado pela própria impossibilidade de investigar esse mundo. Tudo o que podemos ver está na superfície; nossos corpos não foram feitos para as profundezas. Apenas nossa imaginação conseguia ir até lá, pelo menos até antes dos robôs e submarinos”. Ainda assim, ela ressalta que apenas 5% dos oceanos são conhecidos pelos seres humanos.
Paola pontua que “a dificuldade de exploração de regiões profundas está relacionada à alta pressão, que exige aparelhos capazes de suportar essa condição”. O maquinário, porém, exige altíssimos investimentos, sendo o grande obstáculo não-natural ao avanço do conhecimento acerca dessa área. Porém, a professora acredita que o crescente interesse na exploração de recursos minerais em zonas profundas, como o petróleo do pré-sal, pode aumentar o investimento em tecnologias associadas.
Marina coloca que, apesar de a maior parte da zona abissal ser desconhecida, têm ocorrido avanços. “Com o desenvolvimento tecnológico e aumento do uso de submersíveis para a exploração, avanços têm sido possíveis, já que estes permitem coletas mais direcionadas e observações diretas do ambiente, que não eram possíveis quando as coletas eram feitas apenas com o uso de navios”.
Zona abissal sob ataque
Em estudo publicado na revista “Nature Ecology & Evolution”, em fevereiro deste ano, pesquisadores da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, identificaram contaminação química de PCB (bifenilos policlorados) e de PBDE (éteres difenílicos polibromados) em pequenos crustáceos que vivem nas zonas abissais, destacando o modo como a poluição é capaz de alcançar lugares distantes. “As concentrações de PCBs e PCBEs nesses pequenos crustáceos são mais altas que os níveis de base e cinquenta vezes maiores do que em caranguejos oriundos de rios poluídos da China. São dados significativos, pois essas zonas estão muito distantes de qualquer fonte industrial e sugerem que a emissão desses poluentes ocorre em longas distâncias, apesar da regulamentação dos anos 1970, que proíbe esses compostos”, explica o artigo.
Pensar que os humanos estão poluindo até mesmo um local onde raramente estiveram é motivo de preocupação. Assim como outras áreas, a zona abissal possui recursos naturais que têm muito a ensinar à humanidade. Basta olhar para seus habitantes, tão diferentes de nós. “Dividimos a existência na Terra com uma variedade de seres que são, cada um, protagonistas de suas próprias histórias”, analisa a escritora Aline Valek. Território praticamente inexplorado, as profundezas dos oceanos ainda guardam muitos segredos, e estudá-las pode trazer uma nova visão de tudo o que conhecemos. “É, literalmente, visitar outro planeta. Bem aqui, na Terra”.