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Crônica | Lágrimas por Tigré

Através das lembranças do jovem etíope Tadesse, a história de uma das maiores guerras do século 21 é contada
Por Luiz Henrique de Paula Dias (lhp.dias11973@usp.br)

Era um dia como qualquer outro, eu andava pelas ruas de pedra marrom do Cairo, capital do Egito, agradecido pelo alívio do clima ameno de Fevereiro. Estava cansado após um turno duplo exaustivo no hotel em que trabalhava, queria apenas a minha cama. No entanto, minha atenção foi fisgada por uma televisão ligada em um dos comércios locais, a maioria das pessoas passava sem dar atenção, mas era algo impossível para mim.

Na tela surgiam imagens da 37° Cúpula da União Africana. Vários homens poderosos faziam discursos e acordos na frente de milhares de câmeras, mas de todos aqueles rostos um em especial invocou a minha atenção, Abiy Ahmed. O primeiro-ministro da Etiópia era anfitrião da cúpula e uma figura que jamais seria esquecida na minha mente e a de milhares de outros como eu.

De frente aos sorrisos do líder etíope, minha mente voou longe para lembranças da minha casa. Eu sou etíope, nasci no Tigré, uma província no extremo norte do país, lembrei da minha infância difícil em um vilarejo assolado pela fome e pela guerra. Lembrei das pessoas que muitas vezes caíam mortas de exaustão e dos relatos dos meus tios que faziam parte das guerrilhas que lutavam contra o governo marxista de Mengistu Mariam.

Agora parava para pensar que na maior parte das lembranças de meus parentes a guerra era uma constante, a paz em sua terra era a exceção. Mengistu caiu e o partido da minha terra, a Frente de Libertação Popular do Tigré (TPLF), ascendeu ao poder. A guerra nunca parou, só mudava de lugar e às vezes de atores. O novo governo era muito violento, mas para mim e o meu povo no Tigré a vida no geral melhorou muito, as casas começaram a ganhar energia elétrica e muitas pessoas foram conseguindo condições para ter celulares e outras dessas modernidades.

Eu lembro de quando Ahmed subiu ao poder em 2018, assumindo o lugar da coligação da TPLF. Era um homem carismático de discursos doces aos ouvidos. Ele encerrou a guerra com os eritreus, acalmou as disputas de clãs e etnias dentro da nação e perdoou muita gente, os homens do ocidente até deram um tal de Prêmio Nobel da Paz para ele. Todos estavam em festa, parentes exilados voltando, conflitos terminando, quem poderia reclamar? Lembro até hoje dos festivais onde sacrificavam camelos e vacas em churrascos coletivos para comemorar a nova era de paz e prosperidade da Etiópia, uma era que infelizmente nunca chegou.

O primeiro-ministro da República Democrática Federal da Etiópia, Abiy Ahmed. [Imagem: Reprodução/Fotos Públicas]

Apesar do culto à figura de Ahmed que tomou a nação, apelidado de “Abiymania” pelos ocidentais, Ahmed não se mostrou à altura de suas promessas. O país ainda estava cheio de problemas e novas revoltas começaram a explodir por todo lugar, logo no primeiro ano de seu governo. Lembro da decepção das pessoas, e a postura do governo e dos jornais do Sul. Eles sempre culpavam a TPLF e o antigo governo por tudo, até pelas suas próprias falhas. Isso aos poucos foi fazendo com que o país odiasse a TPLF e também todo o meu povo, o povo do Tigré.

As tensões foram aumentando e tudo passou como um relâmpago, o governo central e a TPLF começaram um jogo de pingue-pongue de acusações cada vez mais perigoso. As acusações se tornaram ameaças e quando as eleições esperadas foram adiadas por Ahmed, tudo deu errado, cortes de verbas, eleições paralelas. Quando dei por mim, o primeiro tiro foi dado e o Tigré estava em guerra civil contra o governo central, sendo atacado pelo governo etíope pelo Sul e pelos seus antigos inimigos da Eritréia pelo norte.

Lembro de ouvir relatos todos os dias pelo rádio e pelas pessoas que vinham fugindo pelo sul. Ouvi histórias de massacres, vilas inteiras dizimadas, os homens eram mortos para não se juntarem às forças rebeldes, as mulheres eram tomadas como escravas sexuais e todo o resto era queimado em uma tática de terra arrasada. Eu era um homem jovem, tinha medo de morrer e fui tomado pela covardia. Embalei o que consegui e fugi para o deserto em direção ao Sudão antes que a guerra me alcançasse, onde as pessoas diziam que haviam ocidentais das Nações Unidas que poderiam me ajudar.

Com uma trouxa de roupas nas costas atravessei a savana em um comboio de refugiados cada vez maior. Algumas pessoas estavam apenas com a roupa do corpo, muitas delas sozinhas após perder suas casas e famílias inteiras pela guerra. A travessia era difícil no verão e muitas pessoas despreparadas acabavam morrendo no meio do caminho por insolação ou inanição pelo simples fato de não ter trago consigo recursos suficientes. Aqueles que passavam pelos moribundos e cadáveres até tinham pena, mas o que iríamos fazer? Se déssemos nossa comida para eles, nós poderíamos acabar morrendo também.

Durante a viagem conheci um senhor chamado Dejen, que foi o único sobrevivente de sua família. Ele me disse que quando ouviu a marcha das tropas eritreias, largou tudo que estava fazendo e fugiu para as montanhas próximas ao vilarejo. O homem ficou ali por quatro dias até as tropas irem embora, escondido e assistindo de longe a carnificina que devastou seu vilarejo, retornando apenas após a partida dos soldados junto de outros moradores escondidos, Dejen encontrou apenas a ruína.

Cadáveres estavam espalhados por toda parte a céu aberto, tudo fora pilhado e aquilo que restou foi incendiado pelos eritreus que nutriam um ódio latente pelo povo tigrino. Ele me disse que foi difícil contabilizar as perdas, muitos corpos estavam carbonizados e outros foram encontrados pelas hienas e os chacais antes dos moradores. Do filho mais velho de Dejen só sobraram as mãos, a ossada e restos das roupas e documentos, deixadas para trás por algum grupo já satisfeito de hienas.

A travessia até o Sudão foi dura, mas eu consegui com a glória de Deus encontrar o Centro de Refugiados Hamdayet da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O lugar era um grande terreno vazio apinhado de cabanas brancas da ACNUR, onde alguns dos felizardos conseguiram moradia, aqueles que não conseguiam lugar nas cabanas tinham que improvisar cabanas de palha e lençóis ou simplesmente dormir ao relento.

O dia a dia era complicado, o acampamento vivia lotado conforme chegavam mais e mais pessoas fugindo da guerra. Eu tinha que ser ágil para conseguir as refeições. Como tinha mais gente do que os suprimentos podiam dar conta, aqueles que demoravam demais para chegar às filas acabavam ficando sem nada. Tínhamos pães e refeições mais robustas quando os caminhões chegavam do Oeste, mas na maior parte do tempo comíamos uma pasta castanha de sorgo feita em grandes panelas de aço com bastante água para render mais porções.

No acampamento conheci ainda mais histórias. Vi muitas crianças órfãs que formavam grupos para conseguir sobreviver, dependendo umas das outras como matilhas de mabecos, um tipo de cachorro selvagem comum na savana. Havia tantos relatos de pessoas mortas que minha mente às vezes entrava em parafuso. Essas não eram as piores, as pessoas que morriam pelo menos tinham ido descansar com o Bom Senhor, as que mais me assombram eram daqueles mortos que ainda respiravam e andavam por aí.

Em Hamdayet conheci uma moça chamada Ayana de pouco mais de quinze anos. Ela era um desses cadáveres ambulantes, mal falava ou comia e sua história fiquei sabendo apenas por terceiros. Sua vila foi alvo de ataques eritreus, os homens foram mortos e as mulheres mais atraentes foram tomadas como escravas pelos soldados. Em uma das poucas vezes que Ayana admitiu tampando seu rosto que era abusada com frequência, ela perdeu as contas de quantas vezes foi violentada ou quantos soldados revezaram-na como um objeto ao mesmo tempo antes de conseguir fugir.

Meus dias passaram como vento em Hamdayet, onde aos poucos consegui reunir dinheiro, fosse fazendo pequenos serviços ou vendendo pequenos animais que conseguia caçar na savana. Com a soma arrecadada paguei um contrabandista que prometeu me tirar do Sudão em direção a um lugar melhor. Fui colocado no fundo de um caminhão velho abarrotado junto de outras pessoas, rumo ao Egito.

Nem todos conseguiram completar a travessia, pois o contrabandista no meio do caminho começou a cobrar uma taxa especial fora do combinado. Aqueles que não tinham dinheiro foram levados sob a mira de uma arma para uma cidade, onde temo que eles foram vendidos como escravos. Tive sorte de ter algum dinheiro sobrando com o qual imaginava reconstruir minha vida, com o coração partido fechava os olhos quando alguém era retirado do caminhão implorando ao homem. Preferia não saber o destino dessas pobres almas.

A vida não foi fácil, etíopes não eram bem vistos no Egito, fosse pela nossa crença cristã em uma nação muçulmana, fosse nossa pele-escura em uma nação árabe ou fosse as tensões políticas entre as nossas nações. Com dificuldade consegui me estruturar na capital egípcia exercendo trabalhos que ninguém mais queria fazer em turnos longos que frequentemente atravessavam a madrugada até o raiar do dia. Mesmo com uma vida dura, eu agradecia a Deus, pois sabia que coisas muito piores teriam acontecido comigo se tivesse ficado na Etiópia.

Agora, ali naquela rua do Cairo, em meio à multidão vendo os discursos dos líderes na Cúpula da União Africana, era impossível não reviver todas essas lembranças. Assisti ao presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula, condenar o genocídio na Palestina, enquanto recebia aplauso de todos os presentes, incluindo Abiy Ahmed, um homem responsável pelo genocídio do meu povo, sentado em Adis Abeba, a capital da Etiópia, a alguns quilometros do palco de diversas limpezas étnicas.

O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula, e seu Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Luiz de Almeida, em reunião privada com Abiy Ahmed. [Imagem: Reprodução/Fotos Públicas]

Não pude conter quando um riso maníaco saiu dos meus lábios, um riso ausente de qualquer humor, ri até minhas entranhas arderem e as lágrimas rolarem pelo rosto. Naquele momento percebi que todos eles, ocidentais, orientais e africanos eram iguais e só pensavam em seus próprios interesses, custe a quem custar. Minhas lágrimas eram lágrimas de ódio, lágrimas por aqueles cujos rostos foram brutalmente apagados da história, lágrimas por aqueles cujas mortes ninguém se importa. Pessoas dos dois lados que pagaram com sua alma pelo orgulho e ganância de seus líderes.

Tadesse, Ayana e Dejen não são pessoas reais, mas suas histórias são reais, vividas por diversas pessoas no conflito e apenas personificadas nesses personagens. 600 mil pessoas morreram entre 2020 e 2022 na Guerra do Tigré.

[Imagem de capa: Reprodução/Nigriza]

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