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Diretas Já, 40 anos: jornalistas relembram e discutem o papel da imprensa na campanha que mudou o Brasil

O evento ocorreu na Escola de Comunicações e Artes da USP e contou com a presença de Ricardo Kotscho, Fernando Mitre e Oscar Pilagallo
Fernando Mitre, Oscar Pilagallo, Eugênio Bucci e Ricardo Kotscho (da esquerda para a direita) discutem o papel da imprensa durante o movimento Diretas Já!
Por Fernanda Franco (fernanda.francoxavier@usp.br)

O movimento popular das Diretas Já! foi o maior já visto no Brasil. Promoveu comícios em todo o país e contou com a atuação de milhões de pessoas, dos mais diversos grupos sociais, que lutaram para o restabelecimento da democracia após 21 anos de ditadura e censura. Os jornalistas Ricardo Kotscho, Fernando Mitre e Oscar Pilagallo participaram ativamente da sua cobertura e campanha que, em 1984, reivindicou a volta das eleições diretas para Presidente da República – canceladas desde o golpe militar em 31 de março de 1964. 

Com o propósito de relembrar e ressaltar a importância da imprensa durante esse período histórico, os três jornalistas se reuniram no dia 26 de abril no Auditório Freitas Nobre da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A proposta do encontro era discutir ‘O Papel da Imprensa nas Diretas Já!’ – título do evento promovido pelo Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), por intermédio da jornalista Lígia Trigo, em parceria com a Jornalismo Júnior. O debate foi mediado pelo professor do departamento, Eugênio Bucci, e transmitido ao vivo pelo canal do CJE no Youtube

Por pouco mais de duas horas, os jornalistas compartilharam muitas experiências, saberes e bibliografias. Na primeira parte do evento, Fernando Mitre e Ricardo Kotscho recordaram as redações durante as Diretas Já!. Depois, Oscar Pilagallo fez uma trajetória da cobertura feita pela grande imprensa e a sua importância no movimento – o jornalista Sérgio Gomes, diretor da Oboré Projetos Especiais em Comunicações e Artes, também teve um breve momento de fala. Ao final foi aberto espaço para as perguntas do público, seguido por um momento de autógrafos do livro de Oscar “O girassol que nos tinge: uma história das Diretas Já, o maior movimento popular do Brasil”, lançado em 2023.

25 de Abril: A vitória na derrota legislativa

“A história é feita de gente”, começa Ricardo Kotscho, afirmando que é preciso acreditar que “o povo sempre pode mudar a história”. Uma alusão ao emblemático 25 de abril de 1984, quando a Emenda Dante de Oliveira (PEC nº05/1983), que propunha o retorno das eleições diretas para presidência, foi derrubada por apenas 22 votos na Câmara dos Deputados. 

“As Diretas levaram o povo para as ruas, foi a maior mobilização popular da história do Brasil. Uma coisa absolutamente emocionante. Mas no final a emenda caiu”

Fernando Mitre

Naquele momento, a ditadura vencia, respondendo negativamente aos movimentos populares iniciados em março de 1983. Dentre eles, Fernando destacou o pequeno comício de Goiânia, que teve a presença de Ulysses Guimarães, o qual mais tarde ficaria conhecido como “Senhor Diretas” por sua forte atuação na oposição à ditadura militar. Ele, nas palavras de Kotscho, foi o símbolo da campanha.

Embora a Emenda tenha sido derrotada no Congresso, a comoção pública em torno do tema fez com que a vitória fosse do povo nas ruas de todo o país, sob a liderança política e civil de Ulysses durante os quatro meses intensos de campanha. “As Diretas Já! foi um divisor de águas entre a ditadura e a democracia no Brasil”, realçou Kotscho.

Homem sentado fala ao microfone e segura livro apoiado na mesa.
Kotscho lê trecho do prefácio de seu livro “Explode um Novo Brasil – Diário da Campanha das Diretas”, em que Ulysses Guimarães o chamou de “o cronista das Diretas”. [Imagem: Júlia Sardinha]

Jornalismo e democracia: dois lados da mesma moeda

Assim como Ricardo iniciou sua fala dizendo que a história é feita de gente, Eugênio Bucci complementou dizendo que o jornalismo também é feito de pessoas. E tais pessoas, como enfatizou Fernando, não podem ser contra um movimento como as Diretas Já!.

“Um jornalista não pode ser a favor de ditadura e nem da censura. É um contrassenso. É um problema moral, evidentemente, mas um contrassenso técnico. Sem democracia o jornalismo não viceja, ele não é possível”

Fernando Mitre

A vivência de Fernando e Ricardo como protagonistas na cobertura das Diretas, demonstrou também como não só os repórteres, mas a direção de um jornal sendo a favor do movimento fazia a diferença na cobertura do evento e no próprio ambiente de trabalho, mesmo que a maioria dos jornalistas de todas as empresas fossem a favor das Diretas

A vida ao vivo

“Eu vi a democracia morrendo, eu vi a democracia renascendo e vi a democracia se consolidando”. Assim relacionou Fernando Mitre os três momentos marcantes de sua vida como pessoa e profissional. “Acho que jornalista tem direito a emoção também”, disse ele.

Homem apoia mão direita na mesa e aponta dedo indicador esquerdo para cima.
Fernando Mitre conta a conversa que teve com Tancredo Neves durante a campanha, experiência relatada em seu livro ‘Debate na veia’. [Imagem: Nícolas Dalmolim]

O primeiro momento, “a morte da democracia”, se refere ao comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964, onde o então presidente João Goulart (Jango) tentou pela última vez, sem sucesso, aprovar as reformas e se manter no poder, sendo destituído através do golpe. O segundo, ao “renascimento da democracia”, em 1984, com a campanha das Diretas Já!. Em terceiro, “o desfile democrático”, em 1989, quando fez o primeiro debate da história do Brasil entre candidatos à Presidência da República, transmitido pela TV Bandeirantes, onde trabalhava o jornalista.

Durante a campanha, Fernando era editor-chefe do Jornal da Tarde, um jornal vespertino que fazia parte do Estado de São Paulo, e relembra que as Diretas surpreenderam as redações de certa forma, pois desde o início o assunto não tinha recebido tanta atenção. 

Por outro lado, a Folha de São Paulo cobriu e apoiou a campanha antes mesmo das Diretas, segundo Ricardo, ficando conhecida como o ‘jornal das Diretas’. Na época, ele era repórter da Folha e viajou o Brasil inteiro para fazer a cobertura dos diversos comícios, em que não só era testemunha dos eventos como também partícipe.

“No início da campanha só a Folha, na grande imprensa, acreditou que seria possível, assim como Ulysses, mudar a nossa história. O resto da imprensa, que apoiou o golpe de 1964, viria a reboque aos poucos movida pelas grandes manifestações populares” 

Ricardo Kotscho

Foi a partir do grande comício da Sé, em 25 de Janeiro de 1984, que a maioria da imprensa se sentiu pressionada a tomar a posição de cobri-los, com a transmissão sendo feita ao vivo pela TV Bandeirantes. Neste dia, Fernando parou a sua redação, atrasando o fechamento do jornal, para que todos pudessem assistir a manifestação na TV. “Já tinha um momento cívico lá dentro”, relembra.

Depois disso, ele produziu capas de grande reconhecimento para o jornal, chamativas e incisivas a favor do movimento. “Eu não queria fazer apenas uma grande capa, mas uma capa diferente”, conta Fernando.

Homem fala apontando folha branca ao lado de outros dois homens, que o estão olhando.
Fernando Mitre explica como surgiu a ideia de capa dupla a partir de uma única foto. [Imagem: Nícolas Dalmolim]

Antes das Diretas, Ricardo e Fernando lembram também como a censura afetava o trabalho deles, impedindo-os de informar as pessoas sobre assuntos de relevância pública, como a epidemia de meningite nos anos 70. Para os veículos que não praticavam a autocensura, a ditadura designava profissionais que ficavam dentro das redações, ao lado dos jornalistas, examinando as matérias. 

“Muitas vezes eu fazia uma página inteira sabendo que aquilo ia ser derrubado pelos censores […] Era assim, o dia a dia era terrível”

Fernando Mitre 

Numa estratégia para tentar driblar os censores, Ricardo relembrou que alguns jornalistas não usavam o conceito da pirâmide invertida – técnica jornalística em que as informações principais vão nos primeiros parágrafos da página – e sim o contrário. Colocavam informações irrelevantes no começo e as mais importantes no pé da página, pois os censores liam apenas o início.

Oscar Pilagallo sublinhou que as TV’s e rádios de modo geral também sofreram bastante com a censura, especialmente porque eram os veículos que atingiam disparadamente um maior número de pessoas.

O comportamento da imprensa nas Diretas Já!

Ao traçar brevemente a trajetória da cobertura das Diretas pela imprensa, Oscar Pilagallo conta que no início nenhum veículo registrou qualquer informação sobre a campanha, nem quando Dante conseguiu as assinaturas para a Emenda.

O primeiro evento que mereceu uma cobertura foi o comício do Pacaembu em novembro de 1983, que reuniu cerca de 15 mil pessoas, feito pela Folha de S. Paulo. Ainda assim, para Pilagallo, foi um “começo fraco e ruim” pois a Folha não conseguiu dar um caráter suprapartidário ao movimento – Ricardo Kotscho, inclusive, reportou este comício de forma crítica.

Homem apoia as duas mãos na mesa.
Oscar Pilagallo explica como os veículos demoraram a mudar de comportamento em relação à campanha. [Imagem: Nícolas Dalmolim]

Sobre os demais veículos ainda contrários às Diretas, Oscar apontou que a principal crítica deles era o fato dos comícios terem financiamento público, pois eram organizados em estados em que a oposição estava no poder, e apontavam os organizadores dos comícios – sobretudo Ulysses e Lula – como beneficiários da campanha. Nesse aspecto, Sérgio Gomes, rapidamente destacou o papel da imprensa sindical como molecular na formação da opinião pública durante a ditadura, tendo Lula como principal líder nas portas de fábrica.

Quatro homens em uma mesa olham para um quinto homem, que segura um microfone e está de pé.
Sergio Gomes (primeiro à esquerda) aponta a atuação da imprensa sindical como organizadora de muitos comícios das Diretas. [Imagem: Júlia Sardinha]

De modo contrário, na grande mídia, o Jornal do Brasil chamou as Diretas de ‘açodamento’ (precipitação) por parte dos organizadores e o jornal Globo desdenhou da quantidade de pessoas nas manifestações além de insistir em falácias de que o Brasil tinha um caráter democrático, mesmo em plena ditadura, conforme Pilagallo exemplificou.

“Parte da imprensa aderiu tardiamente e muito por pressão popular, porque a partir de certo momento era impossível ignorar que havia milhões de pessoas nas principais praças públicas” 

Oscar Pilagallo

A situação só foi melhorar no grande comício de Curitiba, o primeiro que deu a formatação do que seria a campanha a partir de então. Até aquele momento, a Folha de S. Paulo era a única engajada na cobertura, a ponto de na primeira página do jornal vir escrito “use amarelo pelas diretas”, como lembrou Bucci.

Mulher vestida de amarelo tira foto ao lado de três homens, todos em pé.
(Da esquerda para a direita) Lígia Trigo veste a camiseta da Democracia Corintiana, que tinha o uso da cor amarela como símbolo das Diretas Já. Seguida por Ricardo Kotscho, Fernando Mitre e Oscar Pilagallo. [Imagem: Nícolas Dalmolim]

Porém isso não significa que a linha editorial da Folha era unânime, havia divergências internas. Enquanto a Folha de S. Paulo apoiava as Diretas, a Folha da Tarde – que fazia parte do mesmo veículo – era contra. O mesmo ocorria com o Estadão e o Jornal da Tarde, o primeiro repudiava a campanha e o segundo tinha  uma posição mais progressista. Só depois das Diretas que houve uma convergência editorial. “Os grandes grupos jornalísticos não são tão monolíticos quanto a gente imagina olhando de fora”, evidencia Pilagallo, ao mostrar como os jornais – sendo da mesma empresa ou não – cumpriram papéis diferentes na história.

À esquerda, imagem de homem autografando livro. À direita, imagem da capa do livro em tons verde e amarelo.
Oscar Pilagallo ao final do evento autografa seu livro “O girassol que nos tinge” lançado em 2023, pela editora Fósforo. [Imagens: Nícolas Dalmolim e Fernanda Franco]
[Imagem de capa: Nícolas Dalmolim]

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