O cheiro prazeroso de aprendizado. De folha em folha, os olhos se movimentam com atenção. A capacidade de fazer parar, olhar para frente e refletir sobre o que foi lido. Nostalgia, felicidade, tristeza, dor e diversas sensações transmitidas internamente. Como essencial à vida humana, os livros!
O Brasil apresenta a oitava maior economia do mundo e os métodos avaliativos do país, como vestibulares, concursos ou entrevistas de emprego, demandam amplo conhecimento cultural. Algumas dessas avaliações possuem até lista obrigatória de obras literárias. O país constrói uma postura que valoriza os livros e, aqueles que têm contato com as obras, tendem a ter mais vantagem em situações avaliativas.
A população brasileira é de cerca de 210 milhões de habitantes e, com base no IBGE, 7,2% são analfabetos. Isso significa 15 milhões de pessoas. O fato de mais da metade da população ler não significa que o país, considerado a maior potência da América Latina, está com um índice satisfatório de indivíduos que leem. O país se contenta com pouco e falha em ações práticas.
No cenário nacional, observa-se a contínua presença do analfabetismo, que cria novas categorias ao longo dos anos. É o caso do crescente aumento nos índices analfabetismo funcional em detrimento do número de analfabetos. Tal diagnóstico consiste em indivíduos que conseguem reconhecer letras e números, porém são incapazes de compreender textos ou realizar operações matemáticas. De acordo com o Inaf (Indicador do Alfabetismo Funcional), três a cada dez pessoas são analfabetas funcionais, o que influencia diretamente nos maiores motivos para não se ler, como em dificuldades e a falta de paciência.
As mazelas educacionais e a estruturação cultural do país refletem na porcentagem de não leitores.
Com base no Censo Escolar de 2017 apenas 39% das escolas municipais de ensino fundamental apresentavam bibliotecas. Sob um intenso contraste, 82% das escolas de âmbito privado têm bibliotecas. Para que se democratize o poder da leitura é preciso de uma participação governamental ativa, na área do ensino público, pois é o que mais sofre em relação a qualidade educacional.
Os livros e a subjetividade
Por mais que posturas governamentais ainda sejam insuficientes, a leitura se consolida como essencial na vida daqueles que têm o hábito de ler. Franciny Saraiva, aluna do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, teve contato com a leitura aos 13 anos. A primeira relação com um livro foi a partir de um trabalho sobre a temática negra, em que o seu professor de Artes indicou a trilogia Deuses de Dois Mundos, de P.J. Pereira. “A leitura apareceu de forma muito decisiva a ponto de revelar quem eu era.” Ela conta que embarcou em um mundo diferente: “Eu nunca tinha lido um livro na minha vida. Nunca tinha lido um romance longo assim, nunca. A partir de então, não quis parar.”
O livro aborda dois mundos distintos, a do jornalista Newtow em São Paulo e a de Orumilá na África ancestral, que se conectam através da magia, em um enfrentamento de diferentes culturas, etnias e religiões. Franciny relata que, após o contato com a trilogia, tomou consciência de sua cor e etnia, em um processo de autoconhecimento. Com a percepção de como era vista pelo mundo através de sua pele. “Acredito que todas as pessoas negras passam pelo processo de descobrir-se negra.”
Os professores de literatura, Danilo Bueno, professor do Colégio Poliedro, e Laudemir Guedes, professor do Colégio Objetivo, compartilham do mesmo pensamento que consolida os livros como diferencial em suas vidas. Danilo conta que teve seu imaginário ampliado após o contato com os livros. “A leitura moldou meu caráter, minha visão de vida, e abriu um campo bem vasto de experimentação e busca.”Laudemir admite analisar a leitura como um dos fatores primordiais para “moldar a personalidade do indivíduo”. Segundo ele, essa composição nas características individuais faz com que ele se considere “um conjunto de leituras”.
Os livros acrescentam aprendizados externos e internos. Há perceptíveis avanços no vocabulário e conceitos gramaticais. Mas, também, eles transmitem amadurecimentos pessoais, como aquela identificação com algum personagem que nos aconselha. Acentuam a criticidade de questões sociais, como visto nas listas obrigatórias para vestibulares, como a Fuvest. Nestas listas, estão presentes obras clássicas da literatura que, além de explorar complexidades nos personagens, abordam problemáticas sociais que ultrapassam décadas.
Franciny passou por esse processo em sua vida com o livro Mayombe, de Pepetela, leitura obrigatória quando ela prestou vestibular. Ela acha irônico que através de uma prova ela conheceria o seu livro predileto. “Sou muito grata a esse vestibular por ter conhecido essa leitura. Mayombe é uma obra fantástica que narra a questão da negritude, do povo angolano em busca da sua liberdade.”
Para ler e se conscientizar, não há limites. Só é necessário estar aberto para entrar no amplo universo que é a leitura.
O impacto que transpõe o individual
Para além do individual, o contato com os livros também acrescenta na nossa postura em relação ao coletivo. Franciny expõe seu prazer em estar em contato com diferentes mundos na leitura. “Acho que isso é muito importante. A leitura me fez uma cidadã que percebe a sociedade como ela é, sem o mundo de fantasias. A leitura de fato me fez uma pessoa melhor.”
Os professores de literatura concordam com os aprendizados sociais derivados dos livros. Danilo afirma que a leitura mudou sua visão para o mundo e para a sociedade, em “um olhar mais crítico e mais humano.”
Laudemir afirma que ler mudou seu posicionamento a respeito da sociedade, e ainda enfatiza que tanto a leitura verbal quanto a não verbal contribuem para esse processo. “Os livros ensinam valores humanos, seja para aceitar e entender a nossa própria visão de mundo, seja para aceitar a visão do outro. Isso nos ajuda a crescer.”
É sobre se desligar do mundo externo e, ao mesmo tempo, acentuar a sensibilidade e criticidade em relação a ele.
A estudante de Letras expõe essa ideia através do relato sobre o seu livro predileto. Para ela, Mayombe é um livro que se expande e sai da caixinha, além de ter mudado completamente a sua visão. “Na obra, os personagens tinham diferentes pensamentos e isso é muito enriquecedor para o texto. Mostra como nós podemos ser diferentes e mesmo assim trabalhar em prol da mesma coisa. O quanto as opiniões divergentes nos tornam mais fortes.”
A importância de mudanças
Medidas para reduzir o analfabetismo funcional também são importantes para o número de leitores habituais aumentar. Principalmente no âmbito da educação básica que tende a ser o primeiro contato dos indivíduos com a leitura.
No entanto, o posicionamento do atual governo de Jair Bolsonaro não atenua os problemas em torno da temática. Em maio, o presidente anunciou cortes de verbas na educação básica e superior. A alfabetização de jovens e adultos foi afetada com corte de R$ 14 milhões dos R$ 34 milhões previstos. Além disso, R$ 2,4 bilhões que estavam previstos para investimentos na educação infantil ao ensino médio foram bloqueadas. Mas, com grandes protestos no mês, as verbas foram reajustadas e o Governo liberou R$1,6 bilhões ao Ministério da Educação (MEC), o equivalente a 21,6% do valor que havia sido contingenciado.
O caminho oposto ao ideal para avanços dos leitores no país é adotado pelo Governo Federal. No plano teórico ações são necessárias para melhorias, mas no plano prático a urgência é negligenciada.
Em entrevista ao Sala 33, a professora e pesquisadora, Luciana Dadico, declara possíveis posicionamentos governamentais para que haja melhoria no panorama da leitura no Brasil. Primeiro, ela enfatiza a necessidade da valorização dos professores. “Sem que se estabeleça uma boa relação entre professores e alunos, a mágica da educação não acontece. Vamos ficar apenas socando informação de má qualidade nos estudantes —na contramão do que defendia Paulo Freire e outros pedagogos importantes.”
A pesquisadora também relata os problemas derivados da falta de incentivos educacionais: “O desejo desaparece das salas de aula. Não há sistema educacional que resista.” Um possível argumento para essa falta de “desejo” nos ambientes escolares é o próprio método escolar. O método tradicional, o mais utilizado nas escolas nacionais, foi desenvolvido no século XIX. Passaram-se dois séculos e o método permanece o mesmo.
Luciana enfatiza a necessidade de boas estruturas escolares e bons planejamentos para que as bibliotecas presentes nas escolas não sejam desperdícios. “Não adianta ter biblioteca sem planejamento e política leitura.”
O Brasil precisa planejar metas para o número de leitores não permanecer estável. Variações que visam o aumento nos leitores habituais são necessárias. Aumentar a taxa de leitores e alfabetizados no país é política pública e urgente para a consolidação de uma leitura democratizada, e não elitizada.