A melhor cena de “Filhos de Bach” é uma sequência de poucos minutos que praticamente não tem falas. Nela, vemos o protagonista do filme, o alemão Marten, conduzir uma pequena orquestra formada por crianças e adolescentes dentro de uma capela.
Conforme elas tocam uma composição de Bach, dirigem olhares e gestos umas às outras, que desnudam toda a dinâmica em jogo — o menino que toca piano tenta impressionar a mocinha do violino; ela logo o supera em precisão e passa a flertar com o violonista, que retribui; a tamborista bate seu instrumento com força em protesto; as crianças mais jovens tocam animadas e alheias à situação, um pouco acima do ritmo, e então para abafar o som da vilã da história, que bate furiosa nos portões, e por aí vai. Essa cena é excelente porque captura não só a essência do filme, mas também tudo o que ele poderia ter sido caso fosse executado melhor. Não à toa serviu de trailer na versão alemã do longa.
O filme é uma coprodução alemã e brasileira, que saiu no exterior no final de 2015, mas que estreia por aqui após quase dois anos. Ele conta a história de Marten (Edgar Selge), um músico aposentado que viaja a Ouro Preto para receber a herança que seu amigo de juventude lhe deixou: uma partitura original do compositor Bach.
Lá, se envolve em altas confusões e trava amizade com Cândido (Aldri Anunciação), o alívio cômico e único falante de alemão, e com as crianças e jovens de um reformatório na periferia da cidade histórica — em especial Fernando (Pablo Vinícius). Em questão de semanas, ele ensina as crianças a tocarem música clássica com jeitão de bossa nova, e as leva para um festival na Alemanha, o que transforma a vida delas e faz Marten recuperar seu prestígio esquecido.
“Filhos de Bach” é um filme gostoso. Fácil de assistir. E justamente por isso é bastante previsível, segue à risca a jornada do herói aplicada a um filme Sessão da Tarde. Claro, a história é incomum, mas os arquétipos permanecem ali: o protagonista mais ou menos nuançado, seu ajudante espirituoso (“Cândido acha tudo!” é praticamente sua única fala), a vilã malvada. Os realizadores do filme perderam uma excelente oportunidade de retratar crianças de rua realistas, de lhes dar um certo controle sobre suas narrativas, ainda mais se tratando de meninos e meninas de rua. Mas o formato desgastado prevaleceu, em última instância, sobre essa possibilidade.
Ainda sobre narrativa, vale citar um ponto incômodo. Fica evidente na trama um ranço da velha síndrome de vira-lata que permeia todos os aspectos da vida brasileira. Ao delegar todo o futuro das crianças — e talvez até do instituto, da cidade, do país — ao homem europeu, o filme mostra ter um pé no colonialismo. Afinal, nenhum dos personagens brasileiros teria um final feliz sem a intervenção do gringo civilizado. Ao mesmo tempo que isso não é um impedimento grave (como já foi dito, é um filme gostoso), isso nos leva a questionar até que ponto os grandes estúdios, distribuidoras e corporações (estas pela lei Rouanet) estão de fato interessados em apoiar e produzir bom cinema brasileiro — e não apenas cinema com brasileiros.
Trailer legendado:
por Laura Castanho
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