Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Quando o silêncio fala mais alto: os finais abertos no cinema

De clássicos a produções contemporâneas, o recurso provoca questionamentos e redefine a relação entre obra e espectador
Por Sofia Matos (sofi.matos@usp.br)

Nem todo filme termina com respostas. Muitos encerram a narrativa em aberto, sem esclarecer o destino dos personagens ou o sentido final da trama. O recurso, presente desde os primórdios do cinema moderno, divide opiniões, mas continua a ocupar lugar de destaque em obras de diretores consagrados e em produções contemporâneas.

Uma ruptura na história da narrativa

Durante as primeiras décadas do cinema, predominava o modelo narrativo clássico, inspirado em estruturas dramáticas tradicionais. Essa lógica se apoiava na sequência de apresentação, conflito e resolução, culminando em desfechos fechados, que garantiam clareza e completude ao espectador.

A partir dos anos 1940, iniciou uma mudança com o neorrealismo italiano, um movimento focado em retratar as dificuldades sociais e econômicas da Itália pós-Segunda Guerra Mundial. Obras como Ladri di biciclette (Ladrões de Bicicleta, 1948), de Vittorio De Sica, romperam com a expectativa de finais lineares e previsíveis.

Mais tarde, a nouvelle vague francesa ou “nova onda” ampliou esse movimento, investindo em tramas que terminavam abruptamente ou sem respostas evidentes, como em À Bout de Souffle (Acossado, 1960), de Jean-Luc Godard.

Para compreender como os finais abertos são construídos, o Cinéfilos entrevistou José Carvalho, roteirista, professor e sócio-fundador da Roteiraria, uma das primeiras instituições brasileiras dedicadas exclusivamente à formação e ao desenvolvimento de roteiristas. Carvalho tem carreira consolidada tanto no ensino quanto na prática. Foi consultor de roteiros para produtoras nacionais e internacionais, lecionou em diferentes instituições e é autor de artigos sobre dramaturgia. 

Segundo Carvalho, o final aberto reflete uma mudança estética importante na história do cinema. “A narrativa aberta é resultado de uma mudança estética que rompeu com a tradição conclusiva. A partir do momento em que os personagens são movidos por fluxo de consciência, não é possível encerrar de forma absoluta.”

José Carvalho é roteirista e em seu currículo destacam-se os longas-metragens Castelo Rá-Tim-Bum: O Filme (1999), Bruna Surfistinha (2011) e a novela Xica da Silva (1996) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Como se constrói um final aberto

O recurso não segue fórmulas fixas. Em alguns casos, o roteiro já nasce com a intenção de manter a ambiguidade; em outros, ela surge no processo de criação, à medida que os personagens ganham autonomia narrativa. Para Carvalho, “a história pode até chegar a uma conclusão, mas se o personagem continua habitado por questões, como fechar esse pensamento, se pensar é um ato involuntário e constante?”.

Isso significa que o final aberto precisa ser sustentado pela coerência da obra. O público deve receber elementos suficientes para formular hipóteses, ainda que nenhuma seja confirmada pela narrativa. Essa forma de encerrar um filme exige equilíbrio, quando o recurso é mal utilizado, a sensação transmitida é de abandono narrativo.

O espectador diante da ambiguidade

A recepção dos finais abertos é marcada por contrastes. Para parte do público, a ausência de respostas provoca frustração. Para outros, o recurso é o que torna a obra mais envolvente. Carvalho destaca: “Quando o final aberto é construído de maneira genuína, o espectador compartilha da inquietação do personagem. Não há frustração, a não ser quando o público é bastante conservador e não entende o código narrativo. Nesse caso, surge a sensação de que algo ficou faltando”.

O filme, A primeira noite de um homem, dirigido por Mike Nichols ganhou o Oscar de melhor direção em 1968 [Imagem: Reprodução/IMDb]

Entre espectadores, o desconforto pode assumir intensidade marcante. A universitária Ana Clara Brito, amante de filmes de ação, conta que não gosta de finais abertos, “eu fico extremamente irritada quando um filme termina sem um desfecho e o pior é quando não existe continuação ou quando só vai sair anos depois. Final aberto, para mim, não é suspense, é pura tortura, a sensação é de que fui feita de trouxa.”

Por outro lado, há quem enxergue os finais abertos de forma positiva. A jovem estudante Ana Louise Almeida relata que considera a proposta instigante, já que provoca reflexão sobre diferentes possibilidades de desfecho e incentiva a criatividade.

Para ela, esse tipo de encerramento deixa ao público um “gostinho de quero mais”, estimulando a continuidade da experiência mesmo após o término da sessão. “Eu acho uma proposta interessante, além de causar um impacto maior, faz com que você pense nas possibilidades de desfecho que o filme poderia ter tomado. Além de explorar a criatividade, sempre deixa aquele gostinho de quero mais ao telespectador”, diz Ana.

Essa visão se conecta ao entendimento de parte da crítica e da academia de que finais abertos não representam falha de narrativa, mas sim escolha estética e criativa. A ausência de respostas prontas permite que a obra dialogue com diferentes contextos e épocas, permanecendo viva e aberta a novas leituras. Além disso, a indefinição pode gerar impacto emocional duradouro, pois, em vez de oferecer conclusões, a obra entrega ao público uma tarefa interpretativa.

Nesse sentido, a ambiguidade pode ser vista como um convite à contemplação. Filmes que optam por esse recurso mantêm-se presentes na memória coletiva não por esclarecerem tudo, mas justamente por deixarem espaço para o espectador completar a experiência. É essa participação ativa que, segundo defensores do recurso, torna o final aberto belo e enriquecedor: uma forma de transformar o público em coautor da narrativa.

Filmes que ficaram no imaginário coletivo

Ao longo da história do cinema, diversos filmes se destacaram por utilizarem finais abertos. Em Inception (A Origem, 2010), Christopher Nolan construiu um encerramento que mantém a dúvida entre sonho e realidade. Já The Graduate (A Primeira Noite de um Homem, 1967), de Mike Nichols, apresenta um desfecho em silêncio, que deixa em aberto o futuro dos protagonistas.

Carvalho cita No Country for Old Men (Onde os Fracos Não Têm Vez, 2007), dos irmãos Coen, como exemplo de final aberto eficaz. Para ele, trata-se de um encerramento, “é um filme que apresenta diferentes perspectivas, sem impor uma verdade única. O público acompanha os personagens até certo ponto, mas a história não se resolve em explicações fechadas”.

Outro caso emblemático é 2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisseia no Espaço, 1968), de Stanley Kubrick, cuja cena final ainda motiva debates acadêmicos e críticas mais de 50 anos após seu lançamento.

O filme, Onde os homens não têm vez, é baseado no livro homônimo de Cormac McCarthy. O filme ganhou quatro Oscars, incluindo Melhor Filme [Imagem: Reprodução/Flickr]

Na produção contemporânea, títulos como Doraibu Mai Kâ (Drive My Car, 2021), de Ryusuke Hamaguchi, e Roma (2018), de Alfonso Cuarón, mostram que o recurso permanece atual e relevante. Ambas evitam respostas definitivas e apresentam ao espectador uma experiência interpretativa aberta.

Pressões da indústria

Apesar da relevância, os finais abertos enfrentam resistência no mercado audiovisual. A lógica comercial de grandes estúdios privilegia resoluções claras, capazes de agradar ao maior número possível de espectadores e facilitar a continuidade em sequências ou franquias.

Carvalho reconhece a dificuldade de equilibrar criação artística e demandas comerciais e avalia que “há um retrocesso. A indústria, hoje, valoriza resultados numéricos. Em produções de grande alcance, há cobrança por finais conclusivos, porque isso aumenta a adesão e o desempenho comercial.

Quando se trabalha de forma mais hermética, o público médio costuma rejeitar, pedindo explicações claras”.Esse cenário explica a diferença entre o espaço que o recurso encontra em blockbusters e aquele ocupado por filmes independentes e autorais. Enquanto os primeiros optam por conclusões definitivas, os segundos assumem maior liberdade criativa para explorar a ambiguidade.

Dirigido por Christopher Nolan, Inception conquistou quatro Oscars técnicos e ficou marcado pelo final ambíguo, que até hoje gera debates entre fãs e críticos. [Imagem: Reprodução/IMDb]

O espectador como parte da narrativa

Mais do que um recurso estético, o final aberto altera a relação entre obra e público. Para José Carvalho, essa é a sua principal função. “Na estrutura clássica, havia uma hierarquia que colocava o público em posição de reverência. Com o drama moderno, essa hierarquia se rompe, e o receptor passa a ser ativo, carregando consigo o final. Ele se torna parte da narrativa.”

Ao transferir para o público a responsabilidade de preencher lacunas, o cinema cria obras que permanecem vivas no imaginário coletivo. A falta de respostas, em vez de encerrar a experiência, prolonga-a, garantindo que esses filmes sigam sendo discutidos muito tempo depois de deixarem as salas de exibição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima