A última temporada de Dark que chegou na Netflix já está dando muitos nós nas cabeças dos espectadores. A ficção sobre viagem no tempo apresenta vários conceitos científicos para embasar a complexidade da trama, principalmente no campo da física, ao explicar a natureza do espaço-tempo desenvolvida ao longo dos episódios. Para além da física, pelas lentes da biologia, a série não decepciona e traz mais desafios para nossa compreensão e para o campo da genética. Entre relações consanguíneas e compartilhamento de graus de parentesco, fica a dúvida se a genética em Dark é ciência ou não passa de ficção.
Atenção: este texto contém spoilers da série Dark
Charlotte Doppler pode ser mãe e filha de Elisabeth Doppler?
De modo resumido, Charlotte Doppler (Karoline Eichhorn) foi adotada pelo relojoeiro H.G. Tannhaus (Christian Steyer), nos anos 1970, e ambos, até então, desconheciam a identidade dos pais biológicos da garota. Já na vida adulta, Charlotte casa-se com Peter (Stephan Kampwirth), com quem tem duas filhas: Franziska (Gina Alice Siebitz) e a caçula Elisabeth (Carlotta von Falkenhayn), em 2011, que é surda.
No final da segunda temporada, é revelado que Elisabeth, por volta do ano 2040, relaciona-se com Noah (Mark Waschke), do qual engravida da própria mãe, Charlotte. Sim! Por mais confuso que seja, na última temporada ainda é exposto com mais detalhes a maneira como isso ocorre, e então percebe-se que, juntas, mãe e filha – ou filha e mãe, chame como quiser – fazem com que a recém-nascida Charlotte seja levada ao passado, em 1970, para ser adotada por Tannhaus, retomando o ciclo do tempo.
Além de render bons memes, o compartilhamento simultâneo do grau de parentesco de Charlotte e Elizabeth confronta-se não somente com a física, mas com a biologia. Afinal, quem herdou os genes e as características de quem e como repassaram seu material genético ciclicamente?
Primeiramente, é necessário recordar alguns conceitos básicos de genética. De maneira simplória, todo indivíduo humano carrega no núcleo de suas células seu material genético (pares de 23 cromossomos), que nada mais é do que um conjunto de estruturas que determinam, quando expressas, as características daquele organismo. A nossa composição genética é herdada igualmente de nossos genitores, isto é, 50% da mãe e 50% do pai. Isso se dá através da união entre os gametas feminino e masculino, a fecundação do óvulo e espermatozoide, que carregam metade do material genético da mãe e do pai, respectivamente.
Esses gametas, por sua vez, são produzidos por um dos processos de divisão celular, a meiose, em que se separa aleatoriamente os genes previamente duplicados de uma célula para gerar mais quatro com metade do material usual. A questão se torna mais complicada ainda quando, no cenário paradoxal da série, ambos os indivíduos deram origem em tempos diferentes um ao outro, recebendo e doando 50% dos seus genes.
Em entrevista ao Laboratório, a doutora em biologia pela Universidade de São Paulo (USP), Clarissa Basso, diz que a biologia necessita essencialmente de uma ordem cronológica dos eventos, ao passo que na natureza observa-se a sucessão hereditária de genes entre genitores e proles. Entretanto, mesmo desconsiderando por um momento a impossibilidade temporal gerada pela série, a probabilidade de que essa passagem dos mesmos genes ocorra é praticamente nula por conta dos meios naturais de recombinação gênica.
A doutora conta que uma visão mais próxima da lógica para explicar o ocorrido em Dark seria de que tanto o óvulo de Charlotte quanto o de Elisabeth eram compostos exclusivamente pelos genes maternos, descartando qualquer intervenção genética dos pais Noah e Peter, o que implica que geneticamente elas não têm avós paternos. Assim, os dois gametas femininos que deram origem a cada uma das personagens eram exatamente iguais, uma entrega e doa à outra a mesma carga genética de modo cíclico ao gerar os óvulos.
Porém, a bióloga completa dizendo que na meiose acontecem recombinações gênicas e mutações que fazem com que cada gameta gerado seja praticamente único, misturando os genes paternos e maternos, e nunca de herança somente de um dos genitores, devido à enorme possibilidade de combinações para 23 entre os 46 cromossomos, somada às recombinações e mutações. Isso explica por que um mesmo casal sempre tem filhos diferentes. Esse mecanismo evolutivo confere à grande parte das espécies uma ampla diversidade de combinações genéticas, que faz dos indivíduos singulares e garante a manutenção da espécie meio às adversidades do ambiente.
A possibilidade da dupla geração de um óvulo de composição unicamente materna, futuramente fecundado, é tão ficcional quanto a própria possibilidade de viajar no tempo e fazer com que Charlotte e Elisabeth sejam filha e mãe uma da outra. Mas, uma lacuna ainda fica sem preenchimento: Se Charlotte passa para Elisabeth o material materno que recebeu da própria Elisabeth, qual a origem desses genes? Assim como a máquina do tempo, a carta de Mikkel (Sebastian Rudolph) ao Jonas (Louis Hofmann) e de vários outros pontos propostos pelo paradoxo temporal de Dark, os genes que elas compartilham também teriam sua origem perdida no espaço-tempo. Ou estariam no terceiro mundo, o de origem?
E as as relações consanguíneas?
Entre as anormalidades geradas pela viagem no tempo estão os intensos laços consanguíneos entres os personagens, sem que ao menos saibam das suas relações parentais. Basta olhar a árvore genealógica das famílias da série para se dar conta da quantidade de incestos, relações “proibidas”, entre os habitantes de Winden. A consanguinidade é dada pela relação reprodutiva entre indivíduos com algum grau de parentesco e, sob o ponto de vista biológico, parece ser um risco à saúde de uma população.
Milena Rodrigues, mestra em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ), contou ao Laboratório que muitas doenças são de ordem genética e que grande parte delas, por sua vez, são desencadeadas por genes específicos de pouco força de expressão, nominados como recessivos. Quando se cruza indivíduos parentes, a incidência desses genes aumenta e, consequentemente, sua força de expressão também, o que leva eventualmente ao desenvolvimento de doenças como anemia, cegueira e surdez. Seria por isso que Elisabeth é surda?
Lábio leporino, genética e radiação
Já no começo da terceira temporada, uma criança, um adulto e um idoso são apresentados em algumas cenas. Parte da caracterização e composição dos personagens que nos faz concluir que se trata da mesma pessoa em três tempos distintos é uma cicatriz no lábio, presente igualmente nas três versões.
Basso diz que, mesmo sem poder afirmar com certeza, apenas com a imagem de algumas cenas, a marca é muito semelhante a um defeito de formação comum: lábio leporino ou fissura labial. Trata-se de uma malformação congênita que ocorre no desenvolvimento do embrião. “As causas dessa anomalia ainda são obscuras, mas entende-se que é de caráter multifatorial”, explica.
Entender a biologia dessa condição faz da série ainda mais instigante, pois entre suas possíveis causas estão implicações genéticas/hereditárias e fatores de radiação, explicados quando relacionados ao fato de que o personagem é fruto da relação consanguínea entre Jonas e Martha (Lisa Vicari), numa cidade conhecida por sua usina nuclear. Afinal, a radiação proveniente dos combustíveis usados na geração de energia nuclear tem capacidade de alterar as células humanas.
Essas são apenas algumas hipóteses entre tantas que tentam desvendar o universos de Dark.