“Como poderia se esperar que eu lidasse com a escola num dia como esse?”
Essa é uma das primeiras frases de impacto que ouvimos de Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986). Um jovem que parece tão certo de suas ideias e que nos conquista com seu ousado plano de matar um dia de aula para desbravar a cidade grande e viver a sua liberdade. Liberdade essa, jovial e inspiradora, que marcou toda uma geração e as que vieram depois dela.
A personalidade cativante, o humor inteligente e o olhar confiante são características que explicam porque temos por esse jovem protagonista tanta admiração. Independente da idade do espectador nos identificamos nas experiências, nas vontades e no desejo de extravasar, que tomam forma nas aventuras que ele vive numa Chicago reinventada pelos anos 70 e efervescente pelas perspectivas dos anos 90.
As mudanças da música, da moda e das tecnologias inspiraram a fantasia dirigida pelo diretor John Hughes, que retrata tão bem a geração da MTV. E Ferris, por mais imerso na cultura pop norte americana que estivesse, também incorporou um espírito transgressor, de uma juventude que seguia os passos dos movimentos de contracultura que vieram antes dela.
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A identificação que temos com ele é o principal gancho para essa aventura ao mesmo tempo nostálgica e entusiástica. Quem nunca quis escapar da rotina com os melhores amigos? A possibilidade de realizar sonhos jovens como assistir a um clássico jogo de baseball ou dirigir por aí numa Ferrari de colecionador é atraente para qualquer geração e coroou o adolescente como símbolo de transgressão, mudança e rebeldia.
O ar cômico que o protagonista usa para lidar com as incertezas de ser um jovem às margens da vida adulta nos aproxima dele. A quebra da quarta parede no filme também nos dá a impressão de sermos mais um membro de sua trupe, formada pela namorada Sloane (Mia Sara), e o melhor amigo Cameron (Alan Ruck). Para mais que desejar sê-lo, queremos ser com ele e com as transformações que a sua presença causa.
Há quem diga que Ferris é egocêntrico, mas o que mais faria um jovem a não ser pensar sobre a própria vida? Entendemos que sua insistência sobre os amigos pode parecer algo forçado, mas no final é indiscutível a influência que esse comportamento tem no desfecho da vida de cada um, principalmente Cameron. O medo de enfrentar a família é uma questão sintetizada nesse conflituoso personagem que, ao final do longa, consegue libertar-se e nos dá a esperança de uma drástica mudança em sua forma de ver o mundo e aproveitar sua juventude.
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Por ser uma comédia escapista, a aventura do protagonista também conversa com críticas a cultura do trabalho e a conformidade do capitalismo. Há certa ambiguidade nessa crítica se considerarmos que o símbolo do adolescente americano médio é usado para questionar um sistema que pretende padronizá-lo e aliená-lo para a vida adulta. No entanto, Ferris cumpre com destreza essa função e nos provoca ao perguntar “é mesmo essa a vida que você quer levar?” e “o que acontecerá com a sua juventude quando o ensino médio acabar?”.
Sua família figura como oposição a esse questionamento. Seus pais, um casal da classe média norte americana estão imersos na conformidade que Ferris repudia. Numa das cenas icônicas, no entanto, vemos o pai dentro do escritório dançando sozinho ao som de músicas animadas de uma parada na rua, onde coincidentemente seu filho cantava e performava numa atitude de rebeldia. Esse contraste provoca o espectador na medida que acende a faísca da jovialidade num personagem tão monótono e imerso no sistema (trabalhando no coração da economia de Chicago).
O contexto de criação do personagem foi marcado pelo surgimento de muitas representações vibrantes da geração nascida entre 60/70. John Hughes ficou conhecido por construir histórias que captavam bem o espírito da época, a exemplo de Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984) e Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985), que formam junto com Curtindo a Vida Adoidado a tríade do diretor. Apesar do sucesso, Hughes ficou recluso e longe dos holofotes até o dia de sua morte, fato curioso que se contrasta com a filosofia que disseminava em suas obras.
Já Matthew Broderick, que interpretou o icônico protagonista, não voltou a viver personagens com o mesmo perfil de Ferris Bueller. Essa autenticidade talvez esteja no fato de que foi e ainda é difícil construir um personagem tão completo e memorável quanto esse, ou seja apenas difícil reinventar um dia da vida desse rapaz que tivemos a oportunidade de assistir. É como se ele nos levasse a visitar nossa própria juventude ー que já passou, ou que ainda está por vir.
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Dentre as mais claras provas de que Curtindo a Vida Adoidado é um incontestável clássico do cinema estão as muitas referências de cenas do filme em longas hollywoodianos. A frase que mais se aproxima de descrever a filosofia de vida de Ferris “Life moves pretty fast, if you don’t stop and look around once in a while you could miss it” (A vida passa rápido demais, se você não parar e apreciar por um segundo você pode perdê-la) já foi repetida por vilões, desenhos animados, pacatos nova iorquinos e até por super heróis como na cena pós créditos de Deadpool. A interpretação da música Twist and Shout foi recriada diversas vezes e ecoa no imaginário do espectador desde a década de 1980 até hoje. A cena icônica:
Além das referências mais explícitas, o filme cria um intertexto com elementos culturais importantes da época. O exemplo mais marcante é a trilha sonora que abrange desde a música tema de Star Wars escrita por John Williams, até músicas dos Beatles. O protagonista cita personalidades cujas ideias respaldam sua filosofia de vida. Ao citar John Lennon, Ferris surfa na onda de seu espírito contra a corrente e adquire para si a transgressão e rebeldia do músico.
Por ser o porta-voz de tantas ideias e um espírito pulsante, o protagonista é o herói de um geração que se enxergava como o rompimento de costumes há tanto tempo cristalizados. Esse levante é um dos caminhos para a formação da cultura pop pós anos 1980 por significar a continuação da revolução cultural, musical e comportamental que se observou na década anterior, com Woodstock, a Guerra do Vietnã e outros acontecimentos históricos.
Querido pelas diferentes “tribos” é uma referência do bom diálogo entre uma juventude diversa, no entanto com ideias para o futuro que se convergem. O protagonista dialoga com a maioria progressista dos adolescentes na atualidade e o espaço da escola é palco desse levante. Ele escancara a necessidade de mudança, que culmina na torcida de todos pelo sucesso de um jovem que decide virar as costas para o comum. A eterna campanha “Save Ferris” é mais que um mal entendido sobre seu paradeiro no enredo, é uma voz conjunta que há muito esperava por um anti herói tão representativo e popular.