Jornalismo Júnior

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O ódio nas mídias sociais

Uma análise do discurso intolerante na internet, os motivos e possíveis desdobramentos disso

Em 13 de março, uma escola na cidade de Suzano sofreu um massacre. Dois dias depois, uma tragédia semelhante aconteceu em duas mesquitas na Nova Zelândia. Uma das características comuns às duas tragédias é o fato de os atiradores frequentarem sites e fóruns online que disseminam um grande volume de conteúdo de ódio. Fugindo do senso comum de que eles são apenas “alguns loucos”, todo esse ódio e violência não vêm de um vácuo e parece que a situação só se intensificou com o avanço das mídias sociais. Seria possível entender o porquê disso?

Foi querendo responder a essa pergunta e talvez encontrar algum sentido para essas ocorrências que me debrucei sobre o assunto. Não acho que exista uma resposta definitiva, mas há validade em ao menos tentar. Devo ressaltar, porém, que não me parece ser um defeito das mídias sociais em si, mas de um processo que ocorre dentro dela. É esse processo e seus componentes o que parece ser o problema.

 

Um panorama da situação

A primeira coisa a se fazer é tentar quantificar o discurso de ódio online. Dados sobre o assédio na internet podem servir de ponto de partida.

Não foi possível encontrar dados do cenário brasileiro sobre assédio na internet ou de crimes motivados por sites que disseminam discurso de ódio. Há algumas pesquisas acerca de cyberbullying, mas nada abrangente.

Outros países apresentam uma pesquisa mais estabelecida na área. Os Estados Unidos me parece o melhor a ser analisado neste quesito, apesar de existirem várias diferenças entre o cenário brasileiro e o cenário americano. 

Segundo o Pew Research Center (um centro de pesquisa localizado em Washington), em 2017

  • 41% dos americanos conectados a internet sofreu algum tipo de assédio 
  • 58% desse assédio aconteceu em mídias sociais
  • 62% da população considera o assédio online  um problema sério 

A pesquisa concluiu que homens e mulheres são igualmente propensos a sofrerem assédio, mas por motivos diferentes: homens sofrem por diferenças políticas enquanto mulheres devido ao seu gênero. 

Em um recorte por raça, 25% das pessoas negras e 10% de pessoas de origem hispânica dizem ter sido assediadas por sua etnia, enquanto apenas 3% das pessoas brancas afirmam ter sofrido pelo mesmo motivo. 

Dois terços das pessoas atacadas estão na faixa etária de 18 a 29 anos. 

Infelizmente não há um recorte de pessoas LGBT na pesquisa, mas o GLSEN — organização americana de educação que trabalha para acabar com a discriminação, o assédio e o bullying com base na orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero nas escolas — publicou uma pesquisa em 2013 que mostrava que jovens LGBT são 42% mais propensos a sofrer assédio online do que jovens não LGBT.

Se não bastasse 4 em cada 10 pessoas de uma população sofrerem ataques online, os EUA também apresentam uma certa propensão a trazer a violência para fora do mundo digital. Há exemplos disso. Um deles é o massacre de Isla Vista em 2014, no qual o atirador, além de frequentar fóruns de discurso misógino, chegou a gravar um manifesto antes de realizar o tiroteio. Outro é a marcha de Charlottesville em 2017, quando grupos supremacistas brancos foram convocados online para se unir e que resultou na morte de 3 pessoas. 

O massacre em Suzano no Brasil mostra como essa passagem da violência digital para a violência “analógica” não é exclusividade americana. Os atiradores pediram dicas no Dogolachan, o principal fórum brasileiro de disseminação de discursos de ódio, para o massacre e depois foram aplaudidos no site pelo ato hediondo. 

Isso não surge do nada. Há uma certa radicalização que vem ocorrendo já a algum tempo. As eleições de 2018 são um bom exemplo. Todo mundo ao menos ouviu os relatos de pessoas bloqueando outras em redes sociais devido às opiniões políticas. É preciso então tentar entender o porquê de isso acontecer especificamente nessas mídias.

 

O indivíduo e o ‘outro’

Conversei com Adriana Vilano Dinamarco, mestre em psicologia pela USP, para entender esse processo. “Nesse caso, você não está falando da raiva em si, mas da intolerância ao outro”, conta Adriana. A pesquisadora fala como não são as mídias sociais que criam esses indivíduos. São indivíduos com egos frágeis ou com uma baixa tolerância ao diferente que, ao encontrarem os mecanismos online, ficam à vontade para expor a raiva e o ódio. 

Nos moldes da internet atual, mostramos apenas parte de nossas vidas em nossos perfis, apenas facetas de uma pessoa. É uma coisa que também acontece na vida “analógica”, porém em um perfil digital não há nossa presença física. Essa estruturação não é o problema em si, mas isso intensifica a possibilidade dos discursos de ódio. Adriana diz: “Nas redes eu conheço parte do outro, não o conheço por inteiro. É muito comum nós julgarmos o outro por essas partes”. 

Ela continua: “Existe também a questão do anonimato. No anonimato eu posso tudo”.  Não é incomum a história de quem cria perfis falsos na internet pelos mais diversos motivos, garantindo essa não identificação online. Além disso, fóruns como o 4chan e o Dogolachan, permitem manter ainda mais esse modo incógnito, até com a ausência de perfis identificáveis no caso do 4chan. Adriana diz: “O anonimato me protege. Nele meus desejos e meus ódios ficam acirrados, porque posso falar o que quiser e não preciso me defrontar com a pessoa. Facilita bastante falar e ter uma cultura de ódio por causa disso”. Isso vale para todas as pessoas, não apenas aqueles que já tem esse ódio. Os elementos radicais apenas levam isso às últimas consequências.

A conectividade digital também permite o encontro de indivíduos com mentalidades muito semelhantes. Isso em si não é um problema, mas com pessoas com uma visão discriminatória encontrando outras com o mesmo tipo de pensamento, a tendência é magnificar esses discursos. Adriana fala de como o apoio de outros com o mesmo tipo de intolerância deixa esses indivíduos ainda mais seguros para expressar o que não falariam em outras condições. A pesquisadora fala em como é alarmante quando indivíduos com uma mentalidade de ódio às outras pessoas passam a se encontrar fora do ambiente digital e continuam com o discurso de violência. 

 

A Não-Comunicação

Conversei também com Deodato Rafael Libanio de Paula, professor de Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), a fim de tentar entender esse discurso de violência. 

Ele se pauta na nova teoria da comunicação, desenvolvida na própria USP, para responder. Em linhas gerais, essa teoria diz que sinalizamos a todo momento que queremos comunicar, mas a comunicação ocorre apenas quando ativamente emitimos uma mensagem e uma outra pessoa está aberta a receber essa mensagem e se deixar modificar por ela. “Na verdade está acontecendo uma intensificação de sinalizações. Porque muitas pessoas emitem sinais, mas pouquíssimas recebem os sinais desse outro. A pessoa está muito preocupada em simplesmente emitir”, diz o pesquisador. 

Deodato fala de como uma abertura para ouvir o outro seria necessária para que a comunicação ocorresse de verdade. Ele explica: “A abertura é o que diz respeito a ler a mensagem e ouvir o que a pessoa tem a dizer, e isso é um componente ético da comunicação”. Para ele, as pessoas estão mais fechadas a ouvir, o que se reproduz na rede. Acrescentando a isso a intensificação na sinalização de mensagens carregadas com discurso de ódio, há um escalonamento da violência. “Você acaba não respeitando o outro, não estando aberto para ele, e estando cada vez mais fechado no seu ego”, Deodato completa.

O pesquisador fala em como esse fechamento tenta totalizar os discursos e tornar uma visão de mundo a hegemônica. Ocorre com um bombardeio de um só tipo de discurso e até formas ilícitas de manipulação (por exemplo a fake news). “O que nós vemos muito nas mídias sociais são pessoas que não querem respeitar as diferenças. Por exemplo, muita gente que votou no político A ou B, quando se expõem na rede, quer que os outros pensem da mesma forma”, diz Deodato. Todo o espectro político atual apresenta discursos violentos e um fechamento a respeitar o outro. Ambos enxergam o outro em uma definição fechada. “Tentar não entender esse outro, julga-lo, tentar dar um conceito, impor algo a ele é um discurso violento, independente da forma como está sendo feito.” 

Esse fechamento leva a não reconhecer as outras pessoas como pessoa. Segundo o pesquisador, isso não é algo novo na história, mas ainda é extremamente perigoso. Ele usa os exemplos do nazismo, fascismo e stalinismo para mostrar o problema. “Esse fechamento discursivo implica diretamente na destruição do outro e na perda do seu rosto”, Deodato conta. Dos exemplos citados, o nazismo talvez seja o mais explícito, pois ao empregar a chamada “solução final”, removeu completamente a alteridade dos prisioneiros de campos de concentração. 

Ele parte do princípio que existem formas e níveis de violências diferentes. “As pessoas falam ‘nossa, você está exagerando’, mas a violência é violência desde o princípio em que você não reconhece o outro como outro até o momento em que o fere objetivamente”,  Deodato continua. “Porque a agressividade do discurso já parte da destruição do outro. Eu estou considerando esse outro como uma coisa, um objeto.”

O discurso de homogeneização do pensamento implica em uma relação de poder que passa por tentar fazer outros iguais a ele ou tentar suprimir o discurso e até a vida de quem pensa diferente. Uma pesquisa da Universidade de Exeter, no Reino Unido, fala sobre uma escalada na discriminação e no assédio na forma de uma pirâmide. Essa análise pode ser observada não apenas na questão de gênero como a pesquisa fala, mas em várias outras áreas. Também pode ser usada para explicar a escalada da violência que observamos nas mídias sociais e que extravasa de volta para a vida “analógica”. É uma forma de tentar explicar, por exemplo, o massacre de Suzano: uma escalada da pirâmide rumo a atitudes cada vez mais destrutivas. Isso está em concordância com o que Deodato fala a respeito da violência nos discursos. 

O objeto de estudo de Deodato é a ética nas comunicações e ele comenta como essa dimensão tem sido perdida. Mais do que uma preocupação apenas de jornalistas e oradores, a dimensão ética é um olhar para o outro carregado de respeito e de responsabilidade para com ele, mesmo que ele seja um estranho. “Se eu olho para esse outro e enxergo uma alteridade, uma pessoa que pensa diferente, que tem outra vida, que é completamente diferente de mim, e consigo respeitar essa diferença, imediatamente a violência no discurso é atenuada.” Ele completa falando que é preciso questionar o porquê da perda na dimensão ética da comunicação e como ocorre essa perda para entender o porquê desses discursos de ódio. 

 

A reprodução de padrões

Ao falar da ética da comunicação, Deodato menciona que é necessário pensar o discurso de ódio como relações sociais que tem muitas implicações políticas e econômicas. Isso dialoga com a pesquisa de uma outra pesquisadora, Carolina Batista Israel, doutora em Geografia Humana pela USP. 

Em sua tese Redes digitais, espaços de poder: sobre conflitos na reconfiguração da internet e as estratégias de apropriação civil, Carolina defende que há a reprodução de padrões já existentes na sociedade nesse novo espaço geográfico que é a internet. Isso ocorre tanto devido à conectividade quanto ao padrão social.

Segundo a pesquisadora, em alguns locais do país, a conectividade chega a 70%, sendo que as classes menos favorecidas acabam tendo um menor acesso. Isso pode gerar uma maioria (e até hegemonia) do discurso de classes mais altas em detrimento de classes mais baixas.

Já em relação ao padrão social, Carolina argumenta que as relações e expressões online possuem formas distintas de acordo com o local de onde o sujeito que produziu tal discurso vem. Esse sujeito reproduz na rede projetos políticos que defende na vida “analógica”. Para a pesquisadora, isso faz emergir dois tipos de geometrias sociais: políticas espaciais verticais ou hierárquicas de um lado, e políticas espaciais horizontais ou distribuídas de outro. As políticas espaciais verticais falam sobre hierarquias sociais, baseadas em leis ou não, em que há os que são “superiores” e os que são “inferiores”. Já as políticas horizontais, falam de relações entre iguais em uma relação mais próxima a um ideal democrático. Indivíduos com uma mentalidade mais voltada para as políticas verticais, no geral, sentem um mal estar ao chegar na rede e serem tratados como iguais pelos que eles consideram inferiores. A união desses indivíduos incomodados contribui para o aumento do discurso de ódio. 

Juntando-se a isso a relação de poder e de homogeneização do discurso, pode-se dizer que a escalada na pirâmide da discriminação não ocorre apenas em nível individual. A ADL (Anti-Defamation League ou Liga Anti-Difamação em português, uma organização não-governamental judaica com sede nos Estados Unidos que luta contra a discriminação) apresenta uma versão da pirâmide da discriminação aplicada para a sociedade, mostrando como a propagação do discurso de ódio pode chegar a resultados catastróficos. De acordo com a pesquisadora da USP, as mídias sociais escancaram esses padrões que já existiam quando, por exemplo, um governante se sente à vontade para expressar uma opinião preconceituosa e carregada de um discurso de ódio em sua página de mídia social. 

 

Ouvindo quem foi assediado

Para sair do plano teórico, procurei pessoas que sofreram assédio online para dar o depoimento. Conversei com Felipe Scalisa Oliveira e Renan Wilbert sobre os ataques que eles sofreram nas mídias sociais. 

Felipe é estudante da Faculdade de Medicina (FM) da USP da capital e é uma liderança de movimentos estudantis, em especial do coletivo LGBT NEGSS – Núcleo de Estudos em Gênero, Saúde e Sexualidade. O coletivo foi criado entre o final de 2013 e o primeiro semestre de 2014, com estudantes preocupados em discutir os assuntos de sexualidade e gênero uma vez que a graduação não abordava esses temas. 

Segundo Felipe, o coletivo foi recebido com uma relação ambígua. “Acabamos sendo alvo de uma certa discriminação presencial nesse primeiro momento.” Tal discriminação consistia em discursos preconceituosos — dizendo, por exemplo, “coisa de viado não é na FMUSP” — e na destruição de cartazes colados pelo coletivo. 

Quando começaram a surgir denúncias de vítimas para o NEGSS sobre homofobia e assédio, eles decidiram tomar uma atitude nos meios digitais. “Decidimos fazer uma campanha online, com notas de repúdio e tentar trazer visibilidade para esses casos.” Foi nesse momento que começou o assédio nas mídias sociais. 

“Em grupos de facebook da faculdade, o grupo do centro acadêmico e o grupo de ex-alunos, começaram a fazer um lixamento online dos coletivos por causa das nossas manifestações que criticavam a estrutura da faculdade.” Felipe conta que as lideranças do movimento passaram a sofrer assédio nas mídias sociais em 2014. Isso devido ao ativismo e à crítica à cultura homofóbica e cultura do estupro que preponderavam na faculdade e que serviam para abafar crimes que aconteciam dentro da instituição. “As pessoas iam na minha página pessoal para me ofender, criavam textões nos grupos da faculdade nos acusando de destruir o que as pessoas mais amavam, nos acusando de caluniar a ‘gloriosa’ faculdade, e que não mereciamos estudar ali.” 

Os assediadores também colocavam fotos das lideranças naqueles grupos fechados com o propósito de difamar os membros dos coletivos e incitar a violência contra eles. “Os comentários eram os mais absurdos possíveis, de ofensas pessoais, de ameaças profissionais, de ameaças à integridade física e até de ameaça a vida”. Esse assédio online foi documentado pelos coletivos e foi levado para a assembleia legislativa. O caso fez parte da chamada “CPI dos trotes” instaurada no final de 2014.

Já Renan é o criador da página do Facebook “Igreja de Santa Cher na Terra”. A página existe desde agosto de 2015 e, segundo Renan, o objetivo é ficar dentro da esfera LGBT e educar essa comunidade acerca dos preconceitos que existem internamente, por exemplo o racismo, o machismo, e a gordofobia. Ele conta que esse tipo de discussão não é bem recebida por certos indivíduos da comunidade, em especial os mais privilegiados ou os que querem agradar os privilegiados. 

“De início eram só comentários do tipo ‘ai, que garoto chato, falando de coisas desagradáveis que ninguém quer ouvir’, mas com o tempo foi piorando”, Renan conta. Ele atribui parte do assédio à sua insistência em trazer essas discussões ao invés de ignorar e ao fato de que ele respondia aos comentários. A partir daí o assédio aumentou. “Foram  montagens com fotos minhas, ir me xingar no meu perfil pessoal, e divulgarem meu perfil em um aplicativo de relacionamentos.” 

Renan chegou a sofrer ataques organizados à sua página e ao seu perfil pessoal. Ele reuniu cópias de vários desses ataques e expôs os agressores. Isso chegou a ser documentado em uma matéria do BuzzFeed. Os ataques diminuíram após isso, mas ainda ocorrem de tempos em tempos. 

Atualmente, Renan diz que não interage mais com esse tipo de comentário e ataque, ele apenas bloqueia os agressores. “O que mais me incomoda é que esses ataques vem de dentro da própria comunidade LGBT, mas especificamente de homens gays, e isso é muito triste. Às vezes a gente é mais atacado pelos nossos do que por homofóbicos, por exemplo”, ele lamenta. 

Renan também alerta que, apesar dos ataques a ele terem parado, os agressores ainda vão atrás de seus amigos que mantém páginas com discussões semelhantes. “Eles podem ter parado de me atacar, mas ainda estão na internet cometendo esse tipo de crime”, conta, se referindo a grupos do Facebook e outras redes que propagam racismo dentro da comunidade LGBT. Renan lembra que racismo é crime, portanto, esses grupos ditos de humor estão infringindo a lei ao fazerem o que eles chamam de piada, mas são racistas, e envolvem inclusive pessoas famosas e pessoas que morreram de forma violenta.

1 comentário em “O ódio nas mídias sociais”

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