Enquanto para uns, ela é uma forma de auxílio a pessoas economicamente desfavorecidas, para outros, a meia-entrada é um dos principais agentes da inflação de ingressos no país
Por João Henrique Silva (joaoh505@gmail.com)
O favorável cenário econômico brasileiro nos últimos anos vem tornando o país um dos pólos para os principais eventos culturais e esportivos – como a Copa do Mundo da FIFA e o festival Lollapalooza. Entretanto, o alto custo dos ingressos para esses espetáculos causa dúvidas quanto à acessibilidade a esse crescimento do consumo cultural no país.
Em meio a discussões a respeito do tema, encontra-se a questão da meia-entrada, que, enquanto para alguns auxilia aqueles que se encontram em condições financeiramente mais delicadas para arcar com o custo integral de um ingresso, para outros é o principal responsável pelo encarecimento do preço dos bilhetes.
O aspecto jurídico da questão
A legislação brasileira é um tanto quanto nebulosa a respeito do benefício. No âmbito federal, a Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003, conhecida como “Estatuto do Idoso”, é a única que comenta a respeito do assunto por meio de seu artigo 23.
Contudo, recentemente foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff a lei nº 12.852 – conhecida como Estatuto da Juventude -, que, além da regulamentação da meia-entrada a estudantes em eventos artístico-culturais e esportivos, promove uma cota de 40% do total de ingressos disponíveis para os beneficiários. Também será exigido a carteirinha com um selo expedido pela UNE ou pela UBES para que o estudante possa usufruir desse benefício.
Para a professora da PUC-SP e especialista em direito do consumidor, Maria Stella Gregori, isso “auxiliará no combate à falsificação de carteirinhas, já que limita os beneficiários àqueles que possuem somente carteirinhas de entidades nacionais”. A questão apresentada pela advogada teve como princípio a Medida Provisória 2208, de 2001, que retirava dessas entidades a centralização da emissão de carteirinhas de estudantes, dando aval para estabelecimentos de ensino ou para associações ou agremiações estudantis confeccionarem seus próprios documentos.
Segundo a representante da Assembleia Nacional de Estudantes Livres (ANEL), Marcela Carbone, a centralização de carteirinhas seria uma forma de manter um monopólio rentável para as entidades estudantis: “No passado, a UNE foi a entidade estudantil que protagonizou e unificou as mobilizações nacionais pelo direito à meia-entrada. E hoje, essa entidade é responsável pela restrição desse direito, colocando-o num balcão de negócios para reconquistar o monopólio das carteirinhas, que certamente trará muito dinheiro à entidade”. Contatada para se posicionar sobre o caso, a União Nacional dos Estudantes (UNE) não respondeu às perguntas propostas.
A inflação dos preços de ingressos
Responsável sobre um estudo a respeito do benefício, o pesquisador da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Carlos Martinelli, afirma que “a concessão de eventuais descontos a outros grupos da sociedade fica facultada, portanto, aos Estados e Municípios, cujas leis se assemelham na carência de detalhes (geralmente com informações vagas compreendidas em 1, 2, no máximo 3 páginas), mas se diferem quanto aos grupos beneficiários, que podem variar bastante de estado para estado: estudantes de diversos tipos de cursos; professores redes públicas e/ou particulares de ensino; pessoas com idade igual ou inferior a 21 anos (estudantes ou não); deficientes físicos, doadores regulares de sangue.”
No estudo, o autor também demonstra que, atualmente, há casos em que certos eventos chegam a ter 90% de seus ingressos vendidos na forma de meia-entrada. Essa incerteza em relação à projeção de receita provoca uma peculiar linha de raciocínio para os produtores. Ao determinar o preço dos ingressos, ele imagina qual será a porcentagem de tickets vendidos sob a condição de meia-entrada e aumenta seu custo para cobrir as despesas do evento e manter certa taxa de lucro.
É o que afirma Carlos Martinelli, por meio de um exemplo mais concreto: “A fim de equilibrar as contas e viabilizar a concessão do desconto, para o qual não recebe nenhuma contrapartida do governo, ele [produtor] aumenta o preço do ingresso em função da porcentagem de meia-entrada esperada, de forma que a média ponderada dos preços pagos corresponda ao ‘preço ideal’ orçado, que é o que chamamos de ‘ticket médio’. Num exemplo numérico: para um show cujo ‘preço ideal’ seria R$ 100,00; e se espera 75% de venda de meia-entrada, um promotor prudente fixará o preço a R$ 160,00; de forma que 25% do público pagando R$ 160,00 compense os 75% do público pagando meia-entrada a R$ 80,00; e com isso se obtenha um ‘ticket médio’ de R$ 100,00. É assim que se viabiliza a meia-entrada por meio de transferência de renda, inflacionando o preço do ingresso, penalizando as pessoas não beneficiárias, que subsidiam um desconto efetivo muito menor que 50% aos beneficiários. No entanto, a estatística de shows não é precisa, não é muito confiável, e alguns promotores preferem não correr o risco de grandes variações de público de Meia Entrada e, para se protegerem, nem calculam ticket médio: simplesmente dobram o preço dos ingressos.”
Seguindo essa linha de raciocínio, o produtor carioca Bernardo Amaral ratifica o método exposto pelo pesquisador para tabelar os ingressos de um determinado evento: “Todo negócio é baseado no seu equilíbrio financeiro, entre receitas e despesas. No caso do show business, a base do equilíbrio é o ticket médio, que vem a ser a média entre inteiras e meias.”
É por esse motivo, portanto, que o Estatuto da Juventude supracitado busca limitar o número de beneficiários em relação ao total de ingressos. A cota proposta de 40% teoricamente faria com que o preço integral do ingresso diminuísse, já que se obteria um “ticket médio” sabendo o limite de bilhetes vendidos como meia-entrada. Para Bernardo Amaral, isso provocaria uma queda de 25% a 30% do valor integral do ingresso, “porque hoje a meia paga quase o valor da inteira, e a inteira paga cerca de ⅓ a mais”.
Já Carlos Martinelli é mais específico. Para ele, “poderá haver uma diminuição dos preços em cerca de 25% para produtores que praticam ticket médio com adesão de 80% do público de Meia Entrada, e cerca de 35% para produtores que simplesmente dobram o preço dos ingressos”. Em contrapartida, Marcela Carbone argumenta que, além de dificultar ainda mais o acesso à cultura por parte da população de baixa renda, a medida poderia provocar até mesmo fim do benefício: “segundo o estatuto [da Juventude], ‘caberá aos órgãos públicos competentes federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal a fiscalização do cumprimento do disposto neste artigo’. Isso significa que será impossível ao estudante aferir se o estabelecimento cultural, sejam casas de shows, cinemas, teatros, circos, etc, estará respeitando de fato a cota de 40%, o que pode significar o fim da meia-entrada!”.
Outras medidas para a problemática
Questionado sobre alternativas para a solução da inflação dos bilhetes além da centralização da emissão de carteirinhas e da cota para o benefício, o produtor carioca é enfático em sua fala: “acho que o preço real dos ingressos somente existirá quando não existir a obrigação de meia-entrada, ou então o governo, ao exigir a prática da meia-entrada, oferecer a compensação no recolhimento dos impostos. Outra alternativa será oferecer meia-entrada quando existir dinheiro público via leis de incentivo fiscal”.
Para o pesquisador da Universidade de São Paulo, além de uma avaliação mais detalhada sobre quem necessita de maior acesso à cultura, é “necessário que se estabeleça diálogos entre os legisladores e cada uma das categorias de eventos culturais/esportivos no intuito de se criar regras detalhadas e eficientes, de forma a observar suas especificidades, principalmente em relação a aspectos como ineditismo, número de realizações, escassez de ingressos, capacidades de lotação, recebimentos ou não de incentivos fiscais, e tantos outros fatores que venham a ser levantados, possibilitando a concessão de descontos relevantes. (…) Outra sugestão minha é a de que a transferência de renda seja explicitada no corpo dos ingressos, evidenciando quanto do total pago se refere ao valor de fato do ingresso e quanto foi transferido ou recebido como subsídio à meia-entrada”. Como exemplo para essa especificação do benefício em relação a cada categoria de evento, o pesquisador cita em seu estudo a Lei nº 9989/06, de Porto Alegre, que estabelece diversas exceções a partir de um parágrafo, além da concessão da meia-entrada a estudantes e também a jovens com até 15 anos de idade.
Embora a discussão a respeito do tema seja onipresente nesse favorável cenário cultural brasileiro, é importante ressaltar que a meia-entrada não é a única causa para a inflação dos preços de ingressos. O pesquisador da Universidade de São Paulo é contundente ao dizer que também são fatores determinantes para esse fenômeno a concorrência exacerbada entre produtoras, a própria estrutura deficitária no país para grandes eventos e o alto custo logístico com equipamentos.
Tudo isso, portanto, tornaria a essência do benefício – facilitar a acessibilidade de estudantes e pessoas de baixa renda a eventos culturais e esportivos – quase nula pelo alto repasse econômico aos consumidores. Para a representante da ANEL, a meia-entrada é de extrema importância na educação de jovens, pois “não basta apenas o direito a uma escola de qualidade, mas também o acesso garantido a eventos culturais e esportivos na cidade no sentido do seu desenvolvimento.”