por Felipe Saturnino
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Este filme faz parte da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para conferir a programação completa clique aqui
A cena primeira deixa ver: um corpo ensanguentado, de face para o chão árido e cinza, porquanto o filme é preto e branco, com o braço direito distendido, numa camisa de dormir e calça com cinto, seus braços nus, cercado de um amontoado de repórteres, fotógrafos, oficiais do exército, avizinhados da casa do assassinato e curiosos da situação. Há esse homem morto de importar ao mundo.
Discreta e pungentemente, pouco antes, o seu título no original do italiano, Salvatore Giuliano (O Bandido Giuliano) vogando na tela, o filme se anunciou entre uns caracteres brancos e grandões.
Obra clássica restaurada do diretor Francesco Rosi, premiada no Festival de Berlim na mesma categoria de direção e exibida como retrospectiva especial, este longa de 1962 baseado em fatos reais passeia com fôlego ostentando as montanhas de Montelepre – lá por onde vive o bando dos bandidos -, pequena aldeia da região da Sicília, na Itália, pano de fundo para o núcleo denso da trama: a possibilidade de independência siciliana através do apoio de grupo de foras-da-lei comandado por Salvatore Giuliano.
Entre flash-backs, que mostram ora a Itália de Mussolini, ora a do pós-Guerra, e fraturas dirigidas por um narrador didático sobre a situação histórica e política – falando de datas símbolo, como a autonomia dada à região em 1945 e a tomada de poder pelo Partido Comunista na cidade, em 1947 -, a produção oscila entre o passamento do protagonista, o mítico Giuliano, e seus feitos passados enquanto chefe do grupo, procurado pelo governo siciliano para auxiliar em suas pretensões de autonomia. Entre idas e vindas, a narrativa abarcará em si, cômica e elegantemente, críticas à carnal fenda italiana observada entre as regiões Norte e Sul.
Durante o filme, seu enredo imbricando a relação desigual estabelecida entre Sicília e partes outras da Itália, uma lâmina fina e gélida de humor, que é a lâmina da ironia fina e sutil, vai atravessar essa consagrada divisão econômica e histórico-cultural. A saber, que se atente à cena de flash-back de ataques aos soldados do exército fascista que persegue os homens do banditismo em Montelepre: um oficial se queixa do labor – “Lutei na (Segunda) Guerra para morrer aqui, nesta terra?!” -, chegando a ressoar, inabalável, num alto e bom tom: “Por que é que a Itália não dá logo a independência pra essa gente?!”.
O choque entre sicilianos e estrangeiros ver-se-á em maior claridão quando, ainda no introito da sequência, um repórter (Sennuccio Benelli), lá pelo Sol escaldante do Mediterrâneo, na debandada do locus do assassinato de Giuliano, divisa um vendedor de limonadas e o indaga o que acha do bandido-chefe, ao que ele responde: “Rouba dos ricos, dá para os pobres”. O vendedor siciliano, emendando as rédeas da conversa, pergunta ao jornalista de onde ele vem, que responde: “De Roma”. A questão final do vendedor, que é a que se segue, vai algo assim: “E você, o que acha da Sicília?”, e corta-se a cena.
Tanto as construções dos sujeitos históricos de Giuliano quanto da Sicília são realizadas em maior parte por terceiros que por si mesmos. Que se diga o quão pouco necessária é a participação direta de Salvatore na narrativa, geralmente de costas ou de lado para a câmera, nunca defronte dela. A Sicília de Rosi, então, ou a parte que ele mostra, é uma visão de estranhos, como oficiais fascistas que vivem-na grotescamente, estes últimos desvairados a prenderem, no filme, quase a todos os bandidos a ver se aqueles delatam onde está o seu chefe-mor, Giuliano.
O mítico Giuliano, espectro que ronda todas as situações do filme, pois se vê morto desde o início, é substância fundamental do imaginário popular, e sabemos dele o que os outros dizem. É nessa afim relação com a Sicília que ele, destemidamente, a representa diante do resto do país, ambos produtos de outros, ambos renegados, contudo partes decisivas para se destrinchar o enredo. O fio que conduz a história corre atrás das consequências dos feitos do grupo de bandidos: a maior delas, o massacre de Portella della Ginestre, perpetrado durante um discurso do Partido Comunista.
Por fim, a sequência versará sobre o tal ocorrido e seus responsáveis, atingindo o clímax nas cenas do julgamento do tribunal. O espectro de Giuliano revolverá à cena assim quando sua declaração à Justiça, sendo julgado após sua morte, preparada prevendo seu assassinato, disser que nenhum dos bandidos sabia do ocorrido. Desmentir-se-á tal constatação pelo seu braço-direito, Gaspare Pisciotta, e se escancarará a carnal correlação de forças entre o poder, a máfia, a polícia e o exército, em anos predecessores a O Poderoso Chefão.