“Não veja as notícias”, “estabeleça uma rotina”, “tire um tempo para você mesmo”, “descubra novas atividades”. Recomendações para cuidar da saúde mental durante o período de quarentena devido ao coronavírus estão por toda a internet e já se tornaram até mesmo repetitivas. Muitas nem ao menos vêm de especialistas e constroem um discurso perigoso de “passos obrigatórios” a serem seguidos para manter o bem-estar.
Apesar de amplamente abordada, a questão da saúde mental no período da pandemia nem sempre é tratada com todos os aspectos e peculiaridades que deveriam ser considerados. A manutenção do bem-estar psicológico depende de muitos fatores e está diretamente relacionada a individualidades. Uma delas é a questão das doenças mentais: a relação da pandemia com transtornos psiquiátricos é delicada e merece atenção e cuidado.
O que é saúde mental?
Para falar sobre isso, é preciso primeiro entender os conceitos de saúde e doença mental. Segundo a psiquiatra Ângela Scippa, professora Titular do Departamento de Neurociências e Saúde Mental (DNCSM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), esses conceitos não se opõem, ao contrário do que muitos acreditam. Ela explica que saúde mental é entendida como uma condição de bem-estar em que o indivíduo é capaz de viver e enfrentar os desafios com menos dificuldades. Por outro lado, “doença mental é um conjunto de sinais e sintomas que levam a um prejuízo funcional externo, na vida laboral da pessoa, e com relação a ela mesma em termos de sofrimento”.
“Saúde mental não é antagônico à doença mental”, explica Scippa. “Uma pessoa, mesmo tendo uma doença mental, pode estar melhor do que outra que não tem.” É preciso ter em mente que existem muitos tipos diferentes de transtornos psicológicos, e que cada indivíduo tem um funcionamento único. Se o paciente não estiver na fase aguda da doença, em que os sintomas se manifestam de forma mais crítica, e estiver seguindo o tratamento, é muito possível que ele passe bem pelas situações de estresse.
Apesar disso, Scippa ressalta que, em uma situação que aumenta os níveis de tensão global, pessoas com doenças mentais podem sim ser consideradas como grupo de risco. “A gente teria que ter um olhar diferenciado”, afirma. A psiquiatra comenta que o aumento da tensão, vinculado a outros fatores, pode fazer com que pessoas que têm doenças como o Transtorno de Ansiedade em situação controlada voltem a manifestar os sintomas.
Ela ainda fala sobre um outro lado dos transtornos mentais, relacionado à psicose, em que o quadro pode ser intensificado em situações como a de uma pandemia. Além disso, pessoas com transtornos desse tipo podem ter maior dificuldade em lidar com a situação e tomar as precauções necessárias. “Uma pessoa que tem um quadro psicótico de longa data, que já não esteja muito bem ou esteja até mesmo expressando sintomas, pode ter o nível de higiene, cuidado e compreensão sobre esses cuidados aquém do de outras pessoas”, comenta Scippa.
Um caminho tortuoso
Como explicado pela psiquiatra, é possível viver bem mesmo sendo portador de algum transtorno mental. Para isso, é importante ter acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Em muitos casos, também é necessário o uso de medicamentos que auxiliam na manutenção do bem-estar do paciente.
Tamiris, 29, tem Transtorno de Bipolaridade e contou que não é fácil conviver com a doença. “Já me atrapalhou muito na minha vida”. O Transtorno Bipolar é caracterizado pela apresentação de dois estados: o depressivo e o de euforia. No primeiro, o paciente fica desmotivado, triste. No segundo, há um “aumento de energia”, em que fica mais otimista, tende a gastar e falar mais, como explica Scippa. Com o tratamento adequado, é possível controlar a doença e manter o bem-estar, como é o caso de Tamiris. Apesar disso, as dificuldades não deixam de existir. “No meu dia a dia, no trabalho, eu sinto muitas oscilações de humor”, ela conta.
Já Luiza, 18, foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade e Depressão. “Por conta da ansiedade, acabo ficando sempre angustiada quando não consigo fazer as coisas que preciso, com sintomas como taquicardia, tremores e dor de cabeça. Mas a depressão me deixa num estado de desmotivação que me faz justamente atrasar os projetos e planejamentos.”. Assim como Tamiris, mesmo seguindo o tratamento e cuidando da saúde mental, em muitos momentos ela se sente afetada pela doença: “Normalmente fico num estado de bastante tensão e aflição.”
Scippa comenta sobre outro transtorno comum e possível de ser controlado com tratamento, mas que também apresenta dificuldades que podem ser intensificadas no período da pandemia: “Tem também o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), no qual os que têm rituais de limpeza podem ter o quadro agravado. A possibilidade de se infectar de verdade reforça o que era antes ‘medo irreal’, por exemplo”.
Ninguém está imune
Segundo Scippa, estudos relacionados a outros períodos e situações mostram que as doenças que têm ocorrência mais intensificada e relação mais forte com esse tipo de situação são a Depressão e o Transtorno de Ansiedade. Ela lembra, porém, que não só os pacientes já diagnosticados com esses tipos de transtorno estão submetidos aos efeitos desses acontecimentos. É importante ter em mente que uma situação de estresse generalizado como uma pandemia afeta intensamente o bem-estar psicológico da população como um todo.
Dessa forma, cuidar da saúde mental é necessário, independentemente de ser ou não portador de algum transtorno. Receber tamanha carga de tensão pode, inclusive, desencadear a manifestação de doenças mentais em pessoas que, até então, não apresentavam sintomas. Isso porque a expressão de transtornos depende de dois fatores: a carga genética e os fatores ambientais.
A psiquiatra explica um pouco sobre como isso ocorre: “Cada indivíduo, na tentativa de lidar com essa carga extra, vai tirar do seu organismo aquilo que ele pode dar o máximo de expressão para controle dessa situação específica. Quando esses mecanismos não se equilibram, ou seja, quando a capacidade de reação do indivíduo não dá conta dessa carga externa, vem o processo do adoecimento”.
Tamiris comenta que se sentiu bastante afetada pela pandemia de Covid-19 e pela situação de quarentena: “Eu entrei num problema de compulsão por compras online”. Isso não necessariamente é a manifestação do quadro da doença, mas se relaciona com a situação que estamos vivendo e as questões individuais de Tamiris.
Luiza também relata que se sentiu bastante afetada pelo isolamento social e pela disseminação do coronavírus. “Me sinto muito menos produtiva nesse período”, ela diz. “Tem sido bem complicado não ter tanta interação social com outras pessoas que não minha família. Não tive nenhum tipo de crise durante esse período, mas já me peguei pensando demais e me deixando levar pelo sentimento que isso traz, principalmente de medo.”
Cuidados essenciais
É essencial que haja um cuidado especial em relação à saúde mental nesse momento, e uma atenção direcionada para quem tem doenças mentais. Scippa considera que isso passa por um conceito chamado de “psicoeducação”, que consiste em mostrar ao paciente que as dificuldades enfrentadas são globais e apresentar maneiras de lidar com elas.
“A gente tem que tentar levar essa pessoa, através de técnicas de motivação, para que ela adote estratégias de enfrentamento e prevenção”, explica a psiquiatra. “Neste momento de dificuldade, a gente precisa ‘dar uma folga’ e aliviar o cérebro dessa carga de tensão e fazer exposição a situações mais prazerosas.”
É o que Luiza vem tentando fazer. Ela não se sente desmotivada a assistir às aulas de Educação a Distância, (EAD) disponibilizadas pela faculdade e busca outras formas de se manter bem. “Tenho procurado cursos online do meu interesse para me despertar mais produtividade. Tem me feito muito bem me informar mais sobre coisas que eu gosto. Para acalmar, tenho usado técnicas de meditação e respiração que aprendi e funcionam muito bem pra mim”, conta. “Decidi também reduzir o uso de redes sociais, porque as notificações sobre o coronavírus, sobre tragédias que aconteceram e a produtividade de outras pessoas acabam me deixando muito triste e desestimulada.”
Scippa lembra também que os serviços de atendimento para doentes mentais estão abertos, não pararam de funcionar devido ao coronavírus. “As emergências, os locais de atendimento em geral, os hospitais universitários, não pararam”, ressalta a psiquiatra. “O que tem se tentado fazer é diminuir a quantidade de pessoas e focar mais na queixa para diminuir o tempo de permanência e exposição delas dentro das unidades”, ela diz, esclarecendo que também tem se notado uma falta natural das pessoas em alguns serviços, provavelmente por medo de se contaminar.
Proteger-se do coronavírus não deve implicar abandonar o tratamento em outros aspectos da saúde. “Dar assistência, com todo o cuidado, para a Covid-19, não deve implicar um prejuízo para as outras doenças que continuam a acontecer, sejam elas da ordem da Psiquiatria ou não”, lembra Scippa. Cuidar da saúde mental também é essencial.
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Achei interessantíssimo o tema e muito bem feita a abordagem e as entrevistas. Parabéns pelo artigo!
Gostaria de parabenizar a Dra Ângela Marise Scippa pela excelente entrevista, especialmente pela ênfase que ela sinalizou de que doença e saúde mental não são excludente. Que alguém pode ter uma doença mental, mas no momento estar em equilíbrio psicológico e poder até funcionar melhor do que uma outra pessoa que não tenha doença mental mas estar sem produzir tão bem quanto se espera dela.