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Nem Deus nem o Diabo na Terra do Sol

“Você conhece o diálogo entre Umberto Eco e Carlos Martini?”, indaga Martín, com os olhos admirados e um domínio curioso da língua portuguesa. O sotaque, porém, não trai as origens estrangeiras do austríaco, estudioso da teologia e diácono da Igreja Católica. Há 24 anos radicado no Brasil, ele – “homem de fé desde que tem …

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“Você conhece o diálogo entre Umberto Eco e Carlos Martini?”, indaga Martín, com os olhos admirados e um domínio curioso da língua portuguesa.

O sotaque, porém, não trai as origens estrangeiras do austríaco, estudioso da teologia e diácono da Igreja Católica. Há 24 anos radicado no Brasil, ele – “homem de fé desde que tem consciência de si mesmo” – ainda atua pela causa social da religião. Por detrás, sobre a estante de madeira acastanhada, o semblante do Papa Francisco repousa em moldura branca.

A obra a que Martín Mayr faz referência é o livro No Que Creem Os Que não Creem, e seu fascínio pela sinergia entre um cético e um crente poderia fazer justiça às relações religiosas travadas no país. “É impressionante como eles se aproximam; e não é como se eles se rendessem, ao dizer ‘não, você está certo’. Há uma convergência. Os tipos diferentes, quando dialogam, conseguem produzir muitas coisas fascinantes”.

Sozinhos na multidão?

Apesar disso, às avessas da literatura, o fato é que nem sempre a palavra conseguiu articular o embaraçado mosaico multirreligioso no Brasil. Sobretudo quando o comparativo é tão desigual. Segundo o censo de 2010 do IBGE, os autodeclarados sem religião (ateus e agnósticos) são apenas 8% de toda a população brasileira. Descrer em Deus, então, num país esmagadoramente religioso, pode ser uma enunciação difícil de proferir. Inclusive dentro da família.

“Minha avó ainda me pede a bênção”, revela Rafael Borghi. Momentos antes, ele deixava o prédio do UOL, exatamente às 13h02, e descia as calçadas da Faria Lima como quem sabe para onde vai. Há 15 anos, a mesma firmeza o tornava ateu.

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Rafael Borghi, há quinze anos ateu, constrói atualmente o núcleo ateísta de São Paulo. (Foto: Jornalismo Júnior)

Entre os bocados do almoço, Rafael lembra ter sido criado em família católica praticante, e, com miudezas, pode remontar sua própria trajetória antes de tomar o ateísmo para si. “Não foi da noite para o dia, eu refleti muito até chegar à conclusão de que o que mais fazia sentido pra mim era o ateísmo e, num primeiro momento, eu não contei a eles. Fui buscar minhas respostas. Depois de algum tempo, quando eu mesmo me aceitei enquanto ateu, decidi revelar à minha família”, conta ele.

Depois da revelação, pairam os olhares

“Penso que o que o ateu não aceita é a criação da fé pelo homem, e aquilo que ganhou o nome de Deus, lido como algo supremo, superior”, divaga Dora. Depois de ter bebido das fontes do catolicismo, da messiânica e do candomblé, ela revela ter encontrado um forte de consolação no espiritismo. Se, por um lado, o trânsito religioso a tornou mais agarrada à tolerância, o olhar do outro sobre um ateu – como é o seu – já é a perspectiva dominante no Brasil. Então, como um cético vê a crença, por sua vez?

“A busca pela espiritualidade, por aquilo que um ateu não crê, é uma procura por segurança”, especula Borghi. “Eu não acho que as pessoas necessariamente buscam uma religião; elas já são criadas em uma. Se estivéssemos na Índia, é provável que fôssemos hindus. Se estivéssemos na Escandinávia Nórdica, na época medieval, provavelmente cultuaríamos os deuses de lá. O contexto é sempre determinante”.

Não por acaso, o contexto foi realmente uma esteira de transformação para Dejaildes Lima. Depois de quase uma década num dos países mais ateus do mundo, revisitando as malas culturais e sociológicas trazidas dos trópicos, Dja – como é causalmente chamada – proseia sobre uma conjuntura avessa à sua antiga. “A Suécia é um país muito evoluído na questão do usufruto dos direitos humanos, civis e sociais. Acho que, por isso, também seja uma concepção muito natural a de que um indivíduo lá possa escolher ter uma religião ou ter o direito de simplesmente não crer em nada.”

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A população da Suécia é 75% ateia. (Fonte: Wikicommons)

Aqui, sua própria espiritualidade é posta à mesa de debate, e ela reconhece o papel normativo que a instituição religiosa pode operar. “Eu acho que eu tinha uma fé cega. Eu era preconceituosa. Hoje eu me sinto livre dessas convenções. Acho que me desvinculei dos termos em que os homens criaram a religião, rompi com a instituição da Igreja. E não é como se eu não cresse em Deus, eu creio em Deus, mas eu também acredito no livre-arbítrio e na importância dos direitos humanos”.

A reflexão social de Pedro Marin, por sua vez, foi ainda mais precoce. Desde a infância, ele escutava dos pais o debate sobre minorias e direitos humanos. Há seis anos ateu, o embrenhar-se no marxismo aprofundou o pensamento libertário do jornalista, e o fez enxergar com mais significância as relações de poder imbuídas na religião.

“A religião pode ser uma forma de dominação, e pode não ser. Em alguns contextos, é uma forma de afirmação, tem um efeito positivo – como é o caso das religiões de matriz africanas pros negros brasileiros”, analisa ele. “O que quero dizer é que não se trata de ser religioso ou não; o que há é um ‘monopólio da fé’ que se relaciona com questões políticas e sociais, e é usado para tais fins”.

Dar nome aos bois da fé ou da falta dela, porém, não é uma operação simples nem para os que se debruçam sobre o caso. O antropólogo e bacharel em ciências sociais Rafael Quintanilha se lançou sobre o ateísmo em seu projeto de mestrado, mas, sobre as escadas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sua fala é cautelosa – e se esguia das afirmações deterministas comuns.

“Eu ainda estou procurando o que as pessoas entendem por ateísmo. Um dos meus preceitos, quando eu vou ao campo, é nunca levar tantas respostas de antemão, eu não sinto necessidade de me posicionar dentro do campo religioso, por exemplo. A pergunta se Deus existe não cabe ao meu quotidiano de vida; mas o que eu tenho entendido é que, pros ateus, é importante negar a religião, o que faz com que alguns se apresentem assim na esfera pública”.

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“A criação de Adão”, de Michelangelo, em paródia cética. (Fonte: Reprodução)

Ateísmo: ser ou não ser luta política

Quando a intolerância molestou minorias socioculturais tantas vezes no caldeirão da História, essa negação religiosa pode ter se tornado um ato de resistência. Quintanilha emenda, porém, que faltariam estudos mais profundos a este respeito. “Aqui no Brasil, de modo geral, o ateísmo é visto dentro da chave ‘escolha religiosa’. Já em outros lugares no mundo, por exemplo, é possível ler que se trata mais de uma posição política. É de se refletir sobre o ato de se declarar ateu: será que eu poderia relacionar o ateísmo com uma militância?”.

Decerto que militar é uma ação política que acaudilha muitas esferas da vida de Pedro Marin, mas ele reconsidera a prioridade de fazê-lo pelo ateísmo, e se esquiva de pensar que ateus sofram uma opressão. “Há certa incompreensão social, sim, mas não acho que é possível pensar os ateus como um grupo oprimido, não há uma grande estrutura social que nos violenta diariamente. O problema é o dogmatismo. Nunca fui agredido por ser ateu, nem quebraram minha casa, mas quantos terreiros já não foram vandalizados por aí?”.

Não bem se sabe quantos terreiros foram abaixo. Ou mesmo quantos ateus já foram agredidos, de alguma forma. Mas o que há para se pensar é que ateísmo e religiões de matriz africana já enfrentaram, em níveis diferentes, a vulnerabilidade da intolerância. Rúbia Luz, nos dezoitos anos em que se reivindica umbandista, por exemplo, já foi muitas vezes perseguida por ela – e nem por isso ela pensa ter trepidado. “Você não escolhe a Umbanda, você é escolhido”.

Em se ver diante da negação de Deus, todavia, Rúbia afirma lhe soar absurdo. “Não consigo ver o mundo sem Deus e não acredito em um que castigue, também. Na minha religião, nós o vemos nas forças da natureza, que são os orixás. Muitas vezes as pessoas querem uma explicação lógica para tudo, mas fé é confiança em algo que você não vê, mas tem certeza que existe”.

Ainda assim, ela não pensa que a religião seja essencial à vida. “Ela pode ajudar no desenvolvimento moral, mas não é fundamental. Eu conheço muita gente que não segue nenhuma doutrina e é muito melhor do que as que seguem, no sentido de não terem preconceitos, ajudarem o próximo, e fazerem realmente o que Deus espera que façamos”.

“E mesmo os ateus acreditam em alguma coisa, certo?”

Indaga Dora, com um traço de riso contornando sua contemplação. Do lado de lá, Marin, que se pergunta se um dia já teve fé, arremataria: “Quando queria muito alguma coisa, tentava falar com Deus, como quem joga na roleta – mas nunca acertava os números. Acredito na possibilidade de tomar as rédeas do destino, lutar objetivamente, nessa vida, pra viver como se deseja. Até o filho de Deus teve de peitar os romanos”.

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