O primeiro longa de Gabriela Amaral, O Animal Cordial (2017), chega para incomodar. O título já parte de uma contradição. Como conciliar a selvageria com a cordialidade se são fundamentalmente opostos? A resposta pode estar no conceito de nome quase igual de Sérgio Buarque de Holanda, o homem cordial, no qual essa face afável seria apenas um artifício para se aproximar das ambições distantes. Pensamento do qual a diretora falou que não serviu-se diretamente, porém, quando suscitada em entrevista, admitiu flutuar em seu imaginário. Por meio de pesados emblemas ela constrói um ambiente falso, o restaurante cafona, o sintetizador que chama clássicos sem entregar a sua magnitude, de forma a despedaçar essa máscara quando chocada com a brutalidade dos conflitos internos dos personagens.
A narrativa começa em um restaurante no qual o ambiente de trabalho é claramente danoso. O salão da casa parece maior do que realmente é devido à ausência de clientes. Amadeu (Ernani de Moraes), o único que lá está, aparenta querer beber mais do que se alimentar, e, portanto, demora até os últimos 15 minutos de serviço para fazer o seu pedido. Na tentativa de alimentar o ânimo de seus descontentes funcionários, Inácio (Murilo Benício) pede um esforço a mais, dado que receberiam a visita de um jornalista em breve. Surge uma esperança na cozinha, mas Djair (Irandhir Santos), o chefe, logo suspeita das palavras do dono. O atrito entre os dois é evidente, ao decorrer do filme não se sabe se é por causa das péssimas condições do estabelecimento ou a inveja do patrão das habilidades do cozinheiro. A possível admiração extravia-se em preconceito, posto que o último é gay e não têm vergonha de assumir uma identidade quase ambígua entre o masculino e o feminino, nas palavras do próprio Irandhir, bem como é diminuído por ser nordestino.
A panela de pressão começa a apitar de verdade quando chega um casal de classe média alta, Verônica (Camila Morgado) e Bruno (Jiddu Pinheiro), com toda a pecha de esnobe, para ser atendido no final do expediente. Inácio, elegante como é com seu cabelo penteado cuidadosamente para trás, não consegue dizer não à clientela, estopim para seus dois mais jovens empregados anunciarem que encerraram o dia. Furioso, ele os demite prontamente, ganhando como contrapartida o lixo orgânico do restaurante, deixado entre os clientes. Apesar do embaraço de todos com a cena, Sara (Luciana Paes), a garçonete da casa, solidariza com o proprietário, em uma postura de submissão, mas sobretudo carência.
Gabriela Amaral não quis dar tempo nenhum sem tensão na película: enquanto Inácio e Djair trocam faíscas no balcão, o restaurante é invadido por dois assaltantes. A dupla não precisa de muito para causar o terror. Em um momento, eles violam Verônica, um deles tenta partir para cima de Sara, e com a brecha causada por um desentendimento entre os dois sobre o assunto respeito, o mais jovem é baleado por Inácio.
Depois que a válvula estoura não há mais volta. O proprietário do restaurante após sentir o poder do fogo em suas mãos decide criar um microcosmos sem qualquer lei, onde o mais forte, no caso o armado, faz o que quer. Sara fica admirada pela potência do patrão e se torna sua única cúmplice, em um jogo de paixão complicado que instaura-se entre os dois. Todos os demais viram reféns, e o jovem baleado, esparramado no chão, contorce-se à frente dos recentes enamorados, que não parecem ligar muito para qualquer sofrimento.
A trama, todavia, cresce em torno dos personagens. Quando as ideias, o caráter, os comportamentos entram em choque, dá-se o suspense, a aflição, o medo, e até o alívio cômico. A violência explícita torna-se apenas um gatilho para despir todos os presentes de convicções morais supérfluas. Mostrar o nu, o cru e o sujo de suas personalidades, a fim de apontar que a sociedade brasileira tem distorções muito graves, só que não vê o seu reflexo torto por diversos motivos. O espelho do banheiro distorce progressivamente o rosto dos personagens, simbolizando essa memória fraturada, conforme a fotografia joga visões inusuais, propositalmente inestéticas, segundo a diretora, como modo de atestar essas desproporções.
O Animal Cordial é uma viagem no interior do povo brasileiro, que embora seja rico em diversidade social e cultural, ainda não lida bem com pluralidades. Quem sabe devido ao conservadorismo, a uma falsa promessa envolvendo a masculinidade, ou talvez o embate e disparidade das classes sociais. E, assim como vivenciar essas desavenças na rotina tupiniquim, no longa a experiência é de gastura. Resta rir do patético, ao passo que busca-se soluções, em meio ao campo minado das violências interpessoais – o verdadeiro terror, segundo Gabriela.
O filme chega aos cinemas no dia 9 de agosto. Confira o trailer:
por Pedro Teixeira
pedro.st.gyn@gmail.com