A pandemia de Covid-19 vitimou, somente no Brasil, mais de 690 mil vidas em números oficiais. Relacionadas a elas estão milhões de pessoas, sejam familiares ou amigos queridos que, por conta dos riscos de contágio e das restrições da época, não puderam estar com os demais que também sofriam. Como consequência, indivíduos passaram por processos de luto turbulentos que podem afetar a maneira como lidam com a morte e também impactar a integridade de sua saúde mental. Para abordar o assunto, o Laboratório traz a visão de uma doutora em psicologia e de pesquisadores da comunicação — que discutem o luto, os efeitos da pandemia e o futuro depois desse período.
O processo do luto
“Quando você tem a perda de algo significativo, que te mobiliza, você entra em processo de luto, que é uma forma do organismo lidar com uma situação que altera profundamente a vida”, explica Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM).
Toda vez que o assunto é luto, é comum que se encontre informações sobre as cinco fases que ele possuiria. Explicado pela psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross em seu livro “Sobre a morte e o morrer”, o processo do luto seria dividido em negação, raiva, negociação, depressão e aceitação —, mas Kovács afirma que, às vezes, essa noção de sequência mais atrapalha do que ajuda. “Essa história das fases acaba moldando o sujeito: você acha que ele tem que passar por determinadas etapas e, se não passa, há algo errado. Mas o processo do luto, apesar de global, é singular; cada um tem sua maneira de enfrentar, lidar com os sentimentos e retomar a vida”, afirma a professora.
O luto não se limita ao sofrimento pela morte e é um processo natural e esperado quando se perde algo ou alguém. Porém, é possível que se transforme em algo perigoso, com o risco de causar adoecimento físico e psíquico: “O luto não acaba, não passa. Entretanto, é normal a pessoa conseguir seguir, não como antes, mas continuar a vida”, explica Maria Júlia.
Se a intensidade dos sentimentos é muita e eles persistirem por muito tempo, impossibilitando o enlutado de continuar suas atividades, a pessoa passa pelo que é chamado de luto complicado.
A importância dos rituais fúnebres e as despedidas não feitas na pandemia
“Os rituais são formas coletivas ou individuais de lidar com situações de crise, são certos atos ou manifestações que ajudam a dar sentido a uma situação que parece totalmente desorganizada”, elucida Kovács. Eles são cerimônias, atitudes que auxiliam no amadurecimento dos sentimentos envolvidos em uma perda.
Os ritos acontecem de diversas maneiras, variando conforme a crença e a cultura daqueles que participam. A forma como se enxerga a morte e como se homenageia os que se foram muda, por exemplo, do judaísmo para o candomblé, que também é diferente de como é no catolicismo. Exemplificando, na cultura judaica, uma das tradições fúnebres é chamada de Keriá, em que os parentes enlutados rasgam suas roupas como símbolo da dor da perda. No candomblé, o Axexê cerimonializa por sete dias a morte de alguém importante para a comunidade, preparando a mudança de plano do espírito do falecido. Já nas religiões cristãs, são comuns os velórios e sepultamentos. O que há de semelhante entre eles é que os rituais possuem alguns papéis que auxiliam no processamento dos sentimentos relacionados ao luto.
Estudiosos da área da morte e dos rituais — como a própria professora Kovács, o historiador Phillipe Ariès e o autor Jean-Pierre Bayard — costumam atribuir algumas funções aos ritos e, sobretudo, aos ritos fúnebres. Entre elas estão: as de marcar a perda de alguém, simbolizar o momento de mudança, reconhecer a importância da perda e o impacto daquela pessoa na vida dos que conviveram com ela, além de oferecer aos enlutados suporte e a noção de pertencimento e conexão de uns com os outros. Dedicar-se a esses ritos também pode amenizar o sentimento de culpa e desamparo.
“Alguns rituais funerários ficaram muito desvalorizados em geral. O velório é um exemplo: querem fazer rápido, acham que não precisa, mas quando não podiam, por conta da pandemia, as pessoas ficaram muito perdidas. Elas não puderam acompanhar no hospital, não fizeram as despedidas, não disseram as últimas palavras, não viram o corpo pela última vez. Houve um ressentimento muito grande, um impacto muito forte no processo do luto”, explica Maria Júlia. É possível que a falta desses ritos complique o luto e prolongue o sofrimento dos enlutados, tornando uma dor natural e esperada em algo prejudicial e patológico.
Pandemia de saúde mental
A professora Maria Júlia afirma ainda que há, após o período mais intenso da pandemia da Covid-19, um momento de “‘pandemia de saúde mental’, com muita gente deprimida, ansiosa e com estresse pós-traumático”. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) do início de 2022 indicam que, durante o primeiro ano da pandemia causada pelo coronavírus, a prevalência de ansiedade e depressão na população mundial aumentou em 25%.
Foi na tentativa de diminuir os impactos na saúde mental que a psicoterapia online tornou-se quase uma unanimidade nos períodos restritivos da pandemia, a famosa quarentena. Ainda que não seja uma prática muito regular — já que o atendimento psicoterapêutico valoriza a relação interpessoal presencial entre profissional e paciente —, a necessidade de atender às demandas psicológicas da população se fez mais forte e, em alguns casos, influenciou a área da saúde a fornecer seus serviços gratuitamente.
Para Kovács, a crise pandêmica — e também a de saúde mental que possivelmente surgirá em decorrência dessa — mostra a necessidade de se investir no sistema de saúde, principalmente nos serviços públicos voltados aos tratamentos psicológicos, que se mostravam precários mesmo antes da Covid-19.
Outras alternativas para o adeus
Pensando no impedimento da realização de rituais fúnebres causado pela pandemia, o LabArteMídia (Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais), grupo de pesquisa ligado à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, tem desenvolvido o Projeto Transcender, uma plataforma para cerimoniais de despedida e memoriais on-line.
“O surto pandêmico estava ainda muito forte na Itália. Tenho muitos amigos padres lá e eles relataram que era muito difícil ver famílias com membros falecendo e que, infelizmente, não podiam realizar um velório, se despedir. Ficamos muito sensibilizados com isso. Eu propus para o grupo de pesquisa pensar em alguma coisa nesse sentido: ‘Será que a ferramenta de comunicação não poderia fazer esse tipo de mediação, de apoio nesse processo de construção do luto?’ ”, relata Deisy Fernanda Feitosa, jornalista, pós-doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais no CTR-ECA-USP e pesquisadora do LabArteMídia. O grupo topou a ideia e, com apoio de outras unidades da USP, surgiu o Projeto Transcender.
A plataforma tem a intenção de criar um ambiente customizável que permite homenagear a pessoa que se foi e dar aos que ficaram a possibilidade de elaborar seus sentimentos relacionados à perda, independente de qualquer religião. Apesar de ser originalmente pensado para suprir a falta de rituais durante a pandemia, os coordenadores do projeto reconhecem que a missão do Transcender não acaba com a diminuição dos casos de Covid-19: “Ele pode ajudar as famílias que estão distantes por motivos independentes da pandemia: às vezes, estão em outros países”, exemplifica Deisy. Ela mesma passou por essa situação. Durante a pandemia, perdeu seu avô, que morava no Nordeste e, com as restrições a viagens na época, não foi possível ir ao encontro da família em outro estado. A importância do Projeto Transcender e da tecnologia para o processo de despedida ficou ainda mais evidente.
O coordenador do projeto, Almir Almas — professor e pesquisador da ECA e também líder do LabArteMídia —, conta que, ainda que o financiamento para o Transcender seja difícil de conseguir, eles acreditam na sua proposta e planejam os próximos passos da ideia. Inicialmente, pretendia-se manter as homenagens na realidade virtual, em vídeos em 360º e ambientes imersivos em 3D. Agora, o plano é partir para o metaverso.
O Transcender é o primeiro projeto da USP a fazer parte do metaverso e está previsto para ser construído em um terreno doado à universidade. A oportunidade de construir algo no ambiente virtual aumentou o número de pesquisadores envolvidos na iniciativa: “São raros os projetos que têm uma capilaridade enorme de pesquisadores em várias áreas e isso é muito importante porque a universidade sempre quer isso. Ela quer transdisciplinaridade”, afirma Almas. Para ele, essa integração reforça o papel da ciência, muito atacada nos últimos anos, a importância do investimento científico e dos projetos universitários em prol da sociedade.
Trago a reflexão dos nascidos e falecidos no contexto da miséria que Não pela condição da Covid-19 mas condição social tem o velório “sozinho” e os coveiros que levam o caixão! A morte é mais um processo importante a quem faz a travessia tanto que temos as Exequias (a religião presente) e o próprio Jesus ressalta tal importância na parabola do Lázaro e o rico: o pobre foi por Ele “identificado” (nome)! No plano humano, a Sociedade “o define” como Indigente!