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Observatório | Projeto de lei que institui colégios cívico-militares é aprovado em São Paulo: entenda seus impactos na educação estadual

O modelo educacional já está presente em outros estados e é mal visto por membros da comunidade escolar
Por Beatriz Hadler (balmeidahadler@usp.br), Breno Marino (brenomarino2005@usp.br) e Matheus Ribeiro (matheus2004sa@usp.br)

No final de maio deste ano, foi aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) o projeto de lei que prevê a criação e implementação de escolas cívico-militares na rede pública de educação do estado. Quase uma semana depois, o texto foi sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

A administração paulista já estuda os efeitos do projeto. A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo estima que de 50 a 100 instituições neste modelo sejam implementadas até o início de 2025.

Nesta reportagem, o Observatório explica o que é uma escola cívico-militar, quais os principais pontos do projeto sancionado por Tarcísio, por que ele causa polêmica e como outros estados já aplicaram o modelo.

Definição do modelo

A escola cívico-militar teve sua origem no Brasil na década de 90 e foi implementada pela primeira vez em Goiás. O modelo é definido como uma adição de elementos da cultura militar em instituições educacionais, porém sem mudanças na forma em que o ensino é realizado. 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, a especialista no método escolar militar e diretora de uma escola da rede estadual do Paraná Joselita Romualdo da Silva esclarece como é o funcionamento dessas instituições. “É como se fosse um hibridismo: há uma estrutura de ensino cívil, convencional, com elementos militares – hierarquização, rígida disciplina, cerimônias, etc. –, que são introduzidos a partir da presença de policiais militares (PMs) no ambiente escolar.”

Jovens vestidos com roupas tradicionais de colégios militares cantam hino
A rigidez das medidas pode variar de estado para estado. [Imagem: Reprodução/Governo do Estado de São Paulo/Marcelo S. Camargo]

Os elementos culturais militares presentes nesse modelo de educação se estendem a questões estéticas, rotineiras e comportamentais. É exigido dos alunos o uso de uniforme, geralmente composto por camisa social de manga curta, farda de calça azul marinho, boina e biriba – tarja de identificação com o nome do estudante. Além disso, é proibido o uso de estilos de cabelo grandes ou coloridos, acessórios como piercings e brincos (no caso de meninas, é permitido usá-los se forem pequenos) e unhas grandes ou pintadas com tons escuros.

A rotina dos estudantes é iniciada pela Formatura, cerimônia diária em que há o hasteamento da bandeira e canto do hino nacional, como forma de “incentivar o patriotismo e o culto a símbolos nacionais”, de acordo com o documento de diretrizes das escolas cívico-militares.

O comportamento dos alunos durante as aulas é regrado pelo monitor, PM responsável por supervisionar a classe e propor atividades extracurriculares. Também é comum o uso de comandos militares, como “sentido” e “descansar”, entre alunos e autoridades. Além disso, são proibidas demonstrações de afeto por meio de gestos como abraços, beijos ou andar de mãos dadas.

Para qualquer transgressão cometida, o aluno será penalizado pela perda de créditos de comportamento, que são cedidos a partir de sua entrada. Esse valor pode ser de 0,25 a 2 pontos e depende da natureza da infração cometida. Além de sujeitar estudantes insubordinados a “medidas disciplinares” que vão desde repressões verbais até mudanças de turno.

O sistema de créditos também é válido para recompensar o bom comportamento: a partir de cada “ação meritória” serão distribuídos 0,25 pontos ao aluno que praticá-las. O estudante poderá ser premiado com elogios de monitores nas Formaturas ou certificados e medalhas (ao fim do trimestre e ano, respectivamente).

O projeto

O Programa Escola Cívico-Militar será coordenado pela parceria entre a Secretaria de Segurança Pública, que será responsável pela administração e disciplina, assim como a escalação de PMs aos cargos nas escolas, e a Secretaria da Educação, que será encarregada dos assuntos pedagógicos. O órgão é liderado por Renato Feder, implementador de mais de 200 instituições desse modelo no Paraná.

O projeto prevê a inserção de colégios estaduais novos ou já existentes no programa a partir da consulta pública à comunidade escolar da região. Os critérios a serem seguidos para determinar quais instituições receberão a mudança, conforme comunicado pela Secretaria da Educação, são os índices de vulnerabilidade e as taxas de rendimento e fluxo escolar — aprovação, reprovação e evasão. De acordo com o que foi dito por Feder ao G1, haverá prioridade às escolas localizadas em áreas de maior criminalidade.

Além disso, a escola que entrar no programa não pode: ter aulas noturnas; ser a única escola pública da cidade; oferecer, com exclusividade, aulas a jovens e adultos; e ser uma instituição rural, quilombola, indigena ou conveniada e/ou ser gerida pela parceria de estado e município.

O Governo do Estado e a Secretaria da Educação de São Paulo justificam que o projeto é uma forma de melhorar a qualidade do ensino público, reduzir a violência e promover a paz no ambiente educacional, junto “ao fortalecimento de valores humanos e cívicos”.

Jovens em colégio militares com fardas azuis batem continência
A lei estadual que prevê a implementação de escolas cívico-militares foi aprovada em 27 de maio, com 54 votos favoráveis e 21 contrários. [Imagem: Reprodução/Agência Brasil/Marcelo Camargo]

As controvérsias 

Em meio à forte oposição a respeito da aprovação do projeto de lei, algumas contradições são levantadas, entre elas, a questão salarial. Os militares da reserva contratados podem receber um salário que varia de R$ 6 mil a R$ 9 mil, caso seja coordenador ou oficial militar. As cifras correspondem a um valor maior do que os professores da rede pública recebem. 

Fábio de Moraes, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), em entrevista à Jornalismo Júnior, comenta: “A aprovação desse projeto levaria ao militar da reserva, que não possui nenhuma formação pedagógica e didática para o cargo, a receber o dobro do salário dos professores e três, quatro vezes a mais que os funcionários que trabalham no ambiente escolar”. O piso salarial dos docentes é de R$4.580,57, mas 46% dos professores da rede pública afirma receber menos do que esse valor. 

Três filas de jovens uniformizados parados com postura de atenção olhando para um oficial da policia. A cena acontece em ambiente externo
 De acordo com dados do Ministério da Educação, o valor médio anual investido por aluno em uma escola comum é de aproximadamente R$ 6 mil. Nas escolas cívico-militares, esse valor sobe para cerca de R$ 10 mil por aluno. [Imagem: Reprodução/Facebook/Escola Lima Neto]

Somado a isso, a inconstitucionalidade também é tema de discussões. A divisão da escola em núcleos, um militar e outro civil, segue na contramão do que define a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB ou Lei nº 9.394/1996), presente na Constituição Brasileira. Ela estabelece que cabe somente ao sistema de ensino o controle pedagógico, administrativo e financeiro, sem quaisquer repartições e consequente perda de autonomia, o que não ocorre nessa proposta.

O projeto de lei foi aprovado e sancionado pelo governo do estado de São Paulo rapidamente e sem qualquer participação do corpo escolar. Essa é mais uma das incongruências do plano, segundo Fábio. “O projeto foi aprovado em regime de urgência, o que não deveria caber para conceitos educacionais, que vão gerar impactos em gerações”, afirma.  “No mínimo, deveria haver uma audiência pública. Não houve debate algum.”

A definição de uma escola que segue os preceitos e ideais militares também segue no caminho contrário à noção democrática do ensino, de acordo com opositores à proposta. Enquanto é prevista em lei a característica laica e livre do ensino público, sem a preferência por quaisquer vieses ideológicos, as escolas cívico-militares partem de aspectos ligados ao  contexto militar, desde vestimentas apropriadas até hierarquias próprias. Dessa forma, a liberdade do corpo docente e dos próprios estudantes também é afetada.

Inconstitucionalidade e resistências

Em decisão proferida no dia 6 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, deu um prazo de dez dias para que o governo de São Paulo se manifeste acerca do projeto. Esse movimento foi motivado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo PSOL e pela APEOESP, que questiona a legalidade da criação de escolas cívico-militares. 

Além disso, o projeto não tem respaldo no cenário nacional para ser implementado. Apesar do decreto que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-MIlitares (Pecim) — assinado em 2019 pelo então presidente Jair Bolsonaro — ter sido revogado em julho de 2023 pelo sucessor Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Lei Complementar nº 1.398, que institui o projeto em São Paulo, foi aprovada pelo governador Tarcísio de Freitas no dia 27 de maio de 2024. 

Governador Tarsicio de Freitas, de São Paulo, com um microfone na mão, em frente a um grupo de adultos sentados e um painel com a logo do governo e os dizeres "Sanção da lei das escolas cívico-militares"
Segundo a ação movida pelo PSOL, o programa gera uma violação “às funções constitucionais da Polícia Militar”. [Imagem: Reprodução/Governo do Estado de São Paulo/Marcelo S. Camargo]

Joselita Silva aponta que isso representa a prevalência de tendências conservadoras e autoritárias entre as bancadas legislativas do país. “Quando o governo de Bolsonaro trouxe o Programa como principal pauta na educação, trouxe em âmbito nacional aquilo que já existia nos estados e municípios”, reitera.

Além da falta de amparo federal, a instituição de escolas cívico-militares no estado foi aprovada em um cenário de violência. Durante a votação do projeto de Renato Feder na Alesp, na tarde de 21 de maio, estudantes que protestavam contra a sua implementação foram reprimidos e agredidos por policiais militares. 

Bruna Rossoni, estudante da Escola Técnica Estadual Cepam e integrante do Movimento Secundarista por meio do coletivo Juntos, estava presente em um gabinete para participar da sessão quando começaram as movimentações. “Estávamos lá em cima quando ouvimos a gritaria. Houve violência, os policiais partiram para cima dos estudantes com cassetetes, o que foi muito triste, porque a maior parte deles eram menores de idade.”

Os movimentos sociais estudantis se opõem à implementação do modelo cívico-militar por meio da conscientização acerca das contradições do programa e dos prejuízos que podem recair sobre os estudantes. “É uma situação que nem sequer se compara com colégios militares. Isso é algo que muitos não estão sabendo”, aponta Bruna. “Enquanto a gente não conseguir conscientizar a população que vai ser afetada, principalmente as pessoas das periferias, o cenário de violação dos direitos dos estudantes e restrição de suas liberdades pode vir a se concretizar nos colégios.”

Jovens são empurrados por escudos de oficiais durante protesto na Alesp
Segundo a Polícia Civil, sete manifestantes foram detidos após tentarem invadir a plenária durante o intervalo da sessão. [Imagem: Reprodução/Liderança do PT/Geovana Oliveira]

Em outros estados

O modelo cívico-militar já existia no Brasil desde 1990, mas se tornou mais conhecido a partir da criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) em 2019.  Atualmente, essas escolas são realidade em pelo menos 19 estados brasileiros — como Goiás, Paraná, Minas Gerais, Amazonas, Pará e Rio Grande do Sul. Sem o repasse de recursos federais desde o ano passado, as redes de educação podem continuar com as unidades nesse formato de ensino usando o orçamento público local. 

“No Paraná, originalmente não constava no plano de governo a criação de escolas cívico-militares. Essa ideia vem dentro do contexto da extrema-direita, da ala conservadora e do convênio com o estado por meio da Pecim”, aponta Joselita. Esse projeto educativo e político está presente em 312 colégios estaduais paranaenses (15% da rede estadual de ensino). Renato Feder, que foi secretário de Educação do Paraná de 2019 a 2022, é o atual titular da pasta em São Paulo. 

A lei estadual que implementou a modalidade de ensino nesse estado também é questionada por uma Adin movida desde 2021 pelos partidos PT, PSOL e PCdoB. Além disso, sua inconstitucionalidade foi alegada em um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), enviado para a avaliação do ministro do STF Dias Toffoli em abril desse ano.

Joselita Silva explica que o programa se enquadra como ideológico. Dentro do seu mestrado sobre a militarização das escolas no Paraná, a pesquisadora concluiu que esse modelo formativo foi proposto como resposta ao protagonismo dos estudantes em movimentos sociais. 

De acordo com ela, o projeto traz consequências como a distorção do processo de ensino — com um investimento maior direcionado para essas escolas e déficits em outras — e a segregação dos alunos, impactando na repressão da diversidade em sala de aula e na evasão escolar. 

Segundo o deputado distrital Tiago Manzoni (PL), presidente da Frente Parlamentar em Defesa das Escolas Cívico-Militares da Câmara Legislativa do Distrito Federal, as escolas cívico-militares têm a aprovação de mais de 88% dos alunos e dos seus pais. [Imagem: Reprodução/Agência Brasil/Marcelo Camargo]

A melhoria da qualidade do ensino e da disciplina dos alunos, um dos principais argumentos em defesa do modelo cívico-militar, não pode ser efetivamente mensurada em pesquisas. Por conta da militarização, a melhor equipe pedagógica e os maiores investimentos são direcionados às instituições que aderem ao programa em diversos estados do país. “Se forem alocados mais investimentos e professores que têm bons resultados em um único ambiente, é óbvio que a formação dessa população vai ser melhor”, explica Emilly Gondim, estudante de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP). 

Tendo completado a segunda fase do ensino fundamental e o ensino médio em uma escola cívico-militar em Quirinópolis, município no interior de Goiás, a estudante compartilha que optou pelo modelo de ensino por haverem poucas opções no local onde morava, apesar da imposição da disciplina ser rígida e da autoridade estar presente do cotidiano escolar. 

Emilly relata que os inúmeros protocolos repreendiam as liberdades individuais dos estudantes e levavam a casos de abuso de poder e violência por parte dos policiais militares, comumente acobertados para não prejudicar a reputação da escola. “Tive que fazer amizade com os policiais para me proteger enquanto aluna de classe média-baixa e negra”, conta. 

Além disso, a proposta de aumento da segurança no ambiente escolar por meio da presença militar também não se concretizava. “Sentia medo quando havia notícias de ataques em escolas. Você sempre pensa que a primeira escola que vai ser atacada é o colégio cívico-militar”, expõe a estudante.

Procurada pela Jornalismo Júnior, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc – SP) enviou o link de um texto publicado no site do governo estadual. Na matéria, a administração aponta que a iniciativa está alinhada com o Plano Estadual de Educação e o investimento será o mesmo destinado às unidades regulares de ensino, incluso em uma reserva anual de R$7,2 milhões para o pagamento dos monitores militares. 

Falas do governador Tarcísio de Freitas defendem a implementação do Programa por oferecer “uma opção adicional no roteiro do ensino público para criar um ambiente com mais segurança e fazer com que a disciplina ajude a ser um vetor da melhoria da qualidade de ensino”. A reportagem também ressalta que a adesão é voluntária por meio do consentimento das comunidades escolares em consultas públicas anunciadas no Diário Oficial do Estado com, no mínimo, 15 dias de antecedência.

[Imagem de capa: Reprodução/Agência Brasil/Marcelo Camargo]

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