É inexplicável, inenarrável, não tenho como colocar em palavras. Quando eu vou ao estádio para ver o meu time, é uma sensação única que, ainda bem, eu posso vivenciar. Só nós sabemos o que enfrentamos para chegar lá, tantos preconceitos, machismo, assédios, tudo isso fica para trás quando meu time está em campo.” Carla Sobrinho, torcedora do Santos, do Grupo Bancada das Sereias.
Lugar de mulher é no campo, na arquibancada e onde mais ela quiser, e sempre foi. A palavra torcida, aqui no Brasil, deve-se muito às mulheres. Específico da linguagem brasileira, o termo “torcedor” é oriundo do latim: vem do verbo torquere, que significa torcer. O verbo ganhou popularidade quando crônicas esportivas do século XX retratavam as mulheres que, nervosas com as partidas, torciam seus lenços nas arquibancadas brasileiras.
E assim, desde muito tempo atrás, as “torcedoras de lenços” já estavam marcando presença no futebol e em outros esportes. Mas mesmo que a arquibancada – e o campo – seja lugar para mulheres, nem sempre foi um espaço confortável para elas.
Uma pesquisa feita pela consultoria de inteligência esportiva Pluri constatou que, das 98,2 milhões de mulheres no Brasil, 68,9% torcem por algum time de futebol. Isso corresponde a 67,6 milhões de torcedoras espalhadas pelos times do país. Torcidas grandes como a do Flamengo e Corinthians têm aproximadamente metade de seu contingente composto por mulheres.
Mesmo em grande número, muitas mulheres têm medo de ir aos jogos de futebol. Assédios, agressões verbais e violência, infelizmente, não surgiram a pouco tempo. Desde abusos no caminho para o banheiro até xingamentos na arquibancada, assistir a uma partida de futebol pode ser uma experiência incômoda.
Um caso recente desses episódios aconteceu em abril de 2019, no estádio do Beira-Rio, em Porto Alegre. Durante o jogo Internacional x River Plate, partida válida pela Copa Libertadores da América, uma torcedora do Colorado levou um soco de um torcedor que queria que ela “saísse da frente” para que ele pudesse assistir à partida.
E a sensação de impunidade é recorrente nesses casos. Muitas vezes o agressor não sofre punição alguma, ou a mulher não tem informações sobre como denunciar casos de violência, o que torna tudo ainda mais difícil.
A arquibancada é delas
“A representatividade feminina ainda é muito pequena, deveria ser maior. Mas entendo que está caminhando aos poucos para melhorar, a Marta é um excelente exemplo, foi na ONU recentemente. Aos pouquinhos estamos conseguindo ganhar espaço” Thaís Ursini, torcedora do Santos, do grupo Bancada das Sereias.
No intuito de criar nos estádios um ambiente mais acolhedor e receptivo para mulheres, torcedoras de diversos times criaram grupos para combinarem de assistir partidas juntas, seja em bares ou direto da arquibancada.
Grupos em aplicativos de conversa, no Facebook e torcidas organizadas femininas se tornam cada vez mais presentes na vida das apaixonadas por futebol. Em 2017, no Museu do Futebol de São Paulo, aconteceu o I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada. Reunião que surgiu por meio de um grupo de WhatsApp e juntou mulheres de todo o país para falar sobre suas experiências como torcedoras, o que deu força e visibilidade ao Movimento Mulheres De Arquibancada.
O Arquibancada conversou com torcedoras dos quatro grandes clubes de São Paulo. “Com a criação do grupo, isso melhorou. Agora tenho liberdade pra ir ao estádio com amigas e o bar que ficamos é cheio de mulheres. Torna o clima mais tranquilo” disse Tatiane, torcedora do Corinthians, do Grupo Movimento Alvinegras.
Tatiane também ressaltou a importância da Copa do Mundo Feminina para as mulheres ganharem cada vez mais espaço nesse meio, que é visto por muitos motivos como um ambiente machista. “Esse ano a visibilidade da Copa está enorme. Estádios cheios, empresas patrocinando e apoiando, mídia dando destaque, estima-se que 1 bilhão de pessoas estão vendo. Agora é o ‘vai ou racha’ do futebol feminino”.
Tatiane ainda completou sobre a visibilidade que as mulheres estão tendo dentro dessa copa, e seus benefícios: “O bom dessa visibilidade é que desmitifica de uma vez isso de que jogo feminino é varzeano, que mulher não sabe jogar. O jogo está mais verticalizado, as seleções mais atentas e melhores taticamente, a técnica melhorou e se vê um futebol mais dinâmico e interessante. E com isso mais pessoas se apaixonam, mais pessoas se apegaram e veem o esporte nacional”.
Elas querem mais do que a arquibancada
Iniciativas como grupos de torcedoras para assistir partidas em conjunto demonstram que as mulheres batalham diariamente pelo direito de possuir a relação que desejam com o futebol. Porém, a paixão delas vai além das arquibancadas e ocupa os campos como nunca antes.
A prática do futebol feminino recebeu atenção em 2019 nunca vista anteriormente no Brasil. A transmissão da Copa do Mundo da modalidade na Rede Globo, maior emissora de televisão do país, alavancou a visibilidade da competição. Mais de 30 milhões de pessoas assistiram o duelo entre Brasil e França, válido pelas oitavas de final da Copa do Mundo Feminina. Isso nada mais é do que a maior audiência da história do futebol disputado entre mulheres, superando a marca de 25,6 milhões de estadunidenses que assistiram a final do torneio em 2015, entre EUA e Japão.
Apesar desses números significativos, ainda há muitos direitos a serem alcançados pelas mulheres. Algumas medidas foram tomadas recentemente, como a obrigatoriedade da manutenção de uma equipe feminina para que um time possa disputar a Série A do Campeonato Brasileiro e a Libertadores da América de futebol masculino em 2019. E o torneio nacional, que não possuía transmissão na TV até maio desse ano, passou a ter um jogo exibido por semana, aos domingos, na Rede Bandeirantes.
A torcedora são-paulina Camila Perillo trata a transmissão desses campeonatos em TV aberta como uma conquista das mulheres. “O futebol feminino é tão lindo e tão mágico quanto o masculino. Às vezes até mais! Foi uma vitória esse ano conseguirmos a transmissão ao vivo nas redes abertas de televisão. […] A gente precisa de representatividade! Imagina aquela menina que ama jogar futebol, dá a cara para bater no meio de um monte de marmanjo, que escuta da família que futebol é coisa de homem, vendo essas mulheres jogando futebol na TV, sendo vista pelo mundo! Gera sentimentos como ‘se ela pode, eu também posso!’”.
Porém, não é pelo fato de os jogos de futebol feminino serem transmitidos que eles recebem o respeito merecido. A também são-paulina Thamires Zambrano lembra que os comentários preconceituosos ainda são muito presentes. Isso a faz acreditar que talvez a mobilização em prol da Copa do Mundo Feminina não se estenda para outras competições. “(…) o que mais vi e continuo vendo são os comentários infelizes, só desmerecendo as mulheres, que jogam mal etc etc. Sei que todo mundo está animado agora, mas não sinto que depois da Copa essa representatividade vai continuar no mesmo ritmo. Infelizmente, creio que seremos esquecidas novamente nesse esporte”, lamenta.
Esse tipo de depoimento por parte de torcedoras apaixonadas como Thamires demonstra como ainda restam muitas barreiras a serem superadas pelas mulheres no meio futebolístico. Seja pelo direito de acompanhar seu time de coração ou pelo respeito ao exercer sua profissão, elas enfrentam diversos empecilhos na busca por espaço.
“Não tenho nem como explicar com palavras direito. Futebol faz parte da minha vida desde criança. Assistir às partidas do meu time me deixa mais feliz, mesmo quando passo raiva. Me faz estar conectada com algo que, para mim, é muito meu. Muito eu. E eu me sinto parte, o que é muito importante.” Tainá Shimoda, torcedora do Palmeiras, do grupo Verdonnas.
Que o futebol é o esporte mais popular do Brasil, não há dúvidas. Que milhões de pessoas por todo o país amam esse esporte, é fato. Entretanto, a realidade enfrentada pelas mulheres no futebol se contrapõe à abrangência do esporte.
Elas enfrentam um mundo que vê na mulher uma figura incapaz de entender ou gostar de assistir jogos. “Parece que mulher torcendo em bar é motivo de chacota. Tá ali por que quer ver os jogadores ‘bonitos’ ou está acompanhando o parceiro”, contou Camila Perillo sobre sua experiência pessoal acompanhando partidas fora dos estádios.
Mesmo com todas as barreiras impostas pelo monopólio masculino presente nas arquibancadas, elas persistem em suas batalhas. Seja pelo simples direito de torcer, de expor suas opiniões sobre futebol ou de vestir a camisa de seu time sem que sofram por isso, as mulheres têm se organizado.
A criação de grupos exclusivos para torcedoras é um dos grandes exemplos dessa luta por igualdade de tratamento no futebol. “Eu comecei a frequentar estádio desde pequena e, aos 13 anos, passei a ir aos jogos sozinha. Eram poucas mulheres que eu via e a maioria estava acompanhando seus cônjuges. Me sentia completamente deslocada, era como se aquela espaço não me pertencesse. Hoje, vejo o quanto isso evoluiu e o quanto as mulheres estão cada vez mais presentes e ativas dentro das arquibancadas.”, analisa Carla Sobrinho.
Entretanto, a jornada das torcedoras não para por aí. As demonstrações de empoderamento feminino, e a organização em conjunto por parte delas, confrontam diariamente os preconceitos, o machismo e a sensação de deslocamento. Porém, da mesma forma que o futebol feminino, a luta das torcedoras vem realizando um grande progresso. E, assim, pouco a pouco elas vão alcançando o simples direito de amar o futebol.