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O avanço das economias digitais e o mito da erradicação da pobreza

Diante do advento de novas ferramentas econômicas, a pobreza ainda persiste. Será que a pobreza se extinguirá com a mudança de seus formatos ou acentuará cada vez mais a desigualdade social com a crescente concentração de renda?

Recentemente Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, afirmou que já está em produção a nova moeda que será instaurada no Brasil daqui a alguns anos: o real digital. A ferramenta, que também servirá como um regulador do mercado cripto, pode apresentar um risco para aqueles que estão nas margens do desenvolvimento econômico, pois esse “avanço” não será usufruído por todos devido a uma política digital e excludente.

Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que 28 milhões de brasileiros vivem sob condições de miséria extrema, demonstrando que a pobreza, de fato, é um fenômeno social, não econômico. Desse modo, como instaurar modelos econômicos futurísticos se ainda estamos em uma realidade com marcas do passado, com tantas pessoas que não possuem nem acesso a aparelhos digitais, tampouco acesso a direitos básicos, como alimentação e acesso à informação? É possível mesmo solucionar a pobreza somente com novas ferramentas, sobretudo, virtuais?

A história da economia caminha ao lado da história das tecnologias, de acordo com a evolução das ferramentas econômicas. Um exemplo disso seria fazer as perguntas: quanto dinheiro físico você possui hoje em sua carteira? E quantos cartões de crédito? Já cadastrou sua conta no Pix ou investiu em criptomoedas? Talvez você ou uma parcela considerável da população sequer tenha acesso a nenhum desses mecanismos. 

De acordo com Vitor Rodrigues, graduado em ciências econômicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), “a digitalização econômica apresenta avanços na ampliação de acesso”, e igualmente em sua exclusão, e na “instantaneidade das relações capitais, reflexo da sociedade altamente produtiva e acelerada nos nossos tempos”. Isso também é amplificado pela divulgação dessas tecnologias em propagandas publicitárias que nos influenciam a adotar um modelo mais rápido, supostamente seguro e mais digital. Mas será que a sociedade está preparada para enfrentar tais mudanças?

A pobreza como fenômeno social

Historicamente, a economia é controlada e comandada por poucas pessoas. São elas que determinam a criação de uma nova moeda, sua circulação e quando surgirão novos formatos. Nesse contexto, já houve a criação de moeda física, cartões de crédito, cheques, transações não-instantâneas digitais (TED e DOC), e hoje se preocupam em expandir a economia virtual com a criação do Pix no Brasil em meio à pandemia de covid-19.

uma pessoa segura nas mãos um smartphone, que exibe página de um banco. também segura cartão de banco e moeda, para remeter ao tema da pobreza e economia digital
O avanço dos formatos digitais suprimiu a circulação de uma economia física. [Imagem: Arquivo pessoal/Danilo Queiroz]

Paradoxalmente, isso não tem alterado os números daqueles que sobrevivem com menos de dez reais por dia, segundo a mesma pesquisa da FGV. São dados estatísticos, mas também são pessoas. Outro estudo proposto pela Fundação, intitulado Desigualdades de impactos trabalhistas na pandemia, também afirma que a desigualdade se alastrou, com base o Índice de Gini, que mede a concentração de renda.

O Brasil é uma das maiores economias mundiais, a 15ª, segundo  o Fundo Monetário Internacional (FMI), e também reconhecido como líder das Américas por possuir um portal de governo unificado com a digitalização de serviços, como o cadastro de contas bancárias ou o aprimoramento da prestação de serviços. Porém, mais de 33 milhões de pessoas estão desconectadas dessa realidade, já que não possuem acesso à internet.

A digitalização da economia praticada desse modo define quem pode ter acesso ou não aos serviços econômicos ditos futurísticos e espalha insegurança naqueles que não têm o conhecimento para usufruir dos serviços e tampouco acessá-los sem o uso de uma ferramenta digital.

Investidores que não investem

Vitor Rodrigues [Imagem: Reprodução]

É nítida a segregação que as tecnologias institucionalizam. Para Vitor, também especialista em gestão de projetos pela UFPB e coordenador pedagógico da Central Única das Favelas (Cufa) da Paraíba, também é preciso enxergar que há um espaço propício para o desenvolvimento de microempreendedores em potencial nas periferias, como a Expo Favela demonstrou. 

São mais de 17 milhões de sujeitos periféricos, de acordo com a Data Favela, e mais de R$118 bilhões são movimentados anualmente nas favelas, segundo o mesmo levantamento. Se há público consumidor, empreendedores e circulação de renda, por que falta investimento? E por que ainda há dificuldades em fazer com que as novas realidades digitais sejam amplamente acessadas nos becos? 

Vitor acrescenta que o problema é que os investimentos são excludentes. E estratégicos. Onde se investe há retorno. Mas como investir não possuindo acesso a nenhum modelo ativo econômico? Dez reais ao dia ainda é realidade de muitos num país como o Brasil, ainda deitado em berço esplêndido e omisso quanto ao enfrentamento da miséria. De fato, há um subdesenvolvimento estratégico que investe em perpetuar desigualdades e lucrar com a miséria alheia.

É necessário uma ampla reforma na distribuição dos recursos a fim de permitir que o retrocesso econômico não venha a ser enraizado ainda mais nas vielas. Para Vitor, é preciso enxergar que o setor de ativos digitais não é pensado para atender ao grande público, como a circulação de criptomoedas e bitcoins.

“Ainda é muito cedo, mas se investimentos não forem feitos imediatamente de forma universalizada, é provável que uma profunda concentração de renda se alastre.”

Vitor Rodrigues

E são modelos voláteis e de rápida transformação com o passar do tempo, como, por exemplo, a queda na circulação do mercado de criptomoedas e o crescimento do Pix. Na verdade, a rentabilidade das ferramentas se dá de forma crescente porque como a moeda é virtual, há maior circulação no mercado e desse modo, maior lucro.

Reforma tributária

Vitor comenta que o Brasil não está totalmente preparado para uma economia digital. O país é o 2º maior em concentração de renda a nível global, com 1% da população mais rica concentrando 28,3% da renda total, sendo que essa concentração perpetua uma exclusão não só econômica, mas também digital.

Segundo o especialista, sem antes desenvolver uma cultura digital e um reparo infraestrutural que atendam a todos, é inviável oferecer auxílios sociais, como ocorreu com o Auxílio emergencial e hoje ocorre com o Auxílio Brasil. Falta investimento, e muito. Estamos diante de uma enorme fossa digital que torna ainda mais vulnerável a situação dessas pessoas.

Hoje, a tarifa tributária para os mais ricos é desproporcional em relação aos seus lucros. Existem dois principais regimes de tributação que influenciam diretamente no valor que pagamos em cada imposto: tributação regressiva e tributação progressiva. Os tributos regressivos se dão no consumo, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), enquanto o progressivo se dá na renda, como o Imposto de Renda. 

Imagine que uma pessoa da classe E, que recebe R$ 1.212, decidiu fazer uma compra na feira do mês no mesmo mercado que uma pessoa da classe B, que tem renda de R$ 12.120. Considerando que as duas pessoas compraram a mesma quantidade de produtos de marcas idênticas, se o preço final da compra ficar em R$ 89, cerca de R$ 30 serão apenas de tributos embutidos no valor da compra.

Dessa forma, em uma única ida ao mercado, uma pessoa da classe E paga 2,5% da sua renda mensal em impostos, enquanto uma pessoa da classe B paga apenas 0,25% de tributo na mesma compra. Com essa comparação, fica evidente como a cobrança de tributos de forma regressiva contribui para o aumento da desigualdade social, visto que mesmo que uma pessoa ganhe dez vezes mais que a outra, ambas contribuem com a mesma quantia em impostos.

Então, como sobreviver com um salário mínimo possuindo uma taxação tributária que impede ainda mais a qualidade de vida das classes baixas?

De acordo com Vitor, antes de impor um novo formato, é preciso taxar os mais ricos e educar a população. Caso contrário, teremos cada vez mais bilionários em nosso país, assim como um avanço da pobreza extrema. Antes que o Presidente do Banco Central afirme “travar” o saque das pessoas após o advento futuro do real digital, é necessário reparar a desigualdade existente hoje.

Analfabetismo digital como ferramenta de subdesenvolvimento

Um outro aspecto que as economias digitais trazem é a insegurança por parte daqueles que não foram educados a manusear as ferramentas digitais, tampouco tê-las. O que preocupa é que a falta de educação midiática corrobora para o avanço de fraudes, além da captura de dados que são comercializados.

Cadastrar uma conta bancária no celular e armazenar lá todos os seus dados pode ser perigoso, principalmente para aqueles que não foram educados a distinguir um golpe de uma transação legal. Os aplicativos que otimizam tais dados se transformam em ativos valiosos no mercado. As publicidades personalizadas que você recebe fazem parte disso. 

De acordo com Pedro Eckman, coordenador executivo da Intervozes, organização que luta por uma comunicação mais transparente, não resta outra alternativa. “Não aceitar esses termos de uso, muitas vezes nem lidos, representa se excluir da realidade digital e econômica. Há um contrato social e consequentemente um controle político”.

Pedro Eckman [Imagem: Arquivo pessoal]

Ele também ressalta que a naturalização da captura de dados pessoais faz parte da cultura imposta pela digitalização dos serviços econômicos, que amplifica a entrega de dados. Já pensou nisso? Sua data de nascimento, sua localização, ou até mesmo seu CPF fazem parte dessa captura. Essa economia precisa entender exatamente o que você deseja e personalizar os serviços para você, fomentando uma invasão de privacidade cada vez mais profunda. Pedro destaca que essa estratégia, que também estará presente no real digital, não só vai permitir que a base de dados consiga rastrear as informações do usuário, como também poderá estimular alguns comportamentos consumistas por meio da notificação de serviços de compra.

“O que me preocupa não é nem o serviço criminal das informações, mas em tese o uso lícito delas como a entrega do seu CPF em um supermercado”

Pedro Eckman

Pedro pontua também que hoje os grandes bancos investem em digitalizar seus serviços para desenvolver medidas eficazes de segurança digital. Os mecanismos de intrusão de software fechado adotados pelas big techs (Facebook e bancos digitais) coletam os dados de cada usuário.

Avanço na digitalização, avanço nas fraudes

Lauraci, moradora das periferias de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, relata ao Laboratório que embora contrarie as estatísticas dos mais de 34 milhões de brasileiros que não possuem conta bancária cadastrada, sente que não está preparada para baixar o aplicativo do banco no celular. 

Uma dessas inseguranças se dá devido aos inúmeros ataques cibernéticos que seus parentes já sofreram. Ela conta que sempre desconfia de links suspeitos no WhatsApp e que cadastrar sua conta no celular abrirá uma brecha mais fácil para golpistas a atacarem ou até mesmo furtadores. 

Embora acredite que esses recursos tragam um certo avanço, ainda falta muito para que ela se sinta segura no ambiente digital de suas transações econômicas. Lauraci sente que essa digitalização a mantém vigiada e que se assusta com a forma que os serviços personalizados se dão por meio dos algoritmos.

Já para Pedro, não há dúvidas que o Estado perdeu o controle da economia após o advento dos bancos digitais. Embora o país venha aderindo cada vez mais esses formatos, a pobreza não vem diminuindo e tende cada vez mais ser acentuada através dos softwares de código fechado, que insistem na identificação dos usuários promovendo um maior controle social e também tecnológico. 

“Não é só falta de informação, as pessoas também estão sem opção”

Pedro Eckman

Após o advento da tecnologia 5G no país, a internet das coisas será cada vez mais acentuada. Seja a virtualização das atividades do nosso cotidiano, como ligar a luz por comando de voz. Esse tipo de processamento, segundo Pedro, aumenta mais ainda o processo de vigilância porque os serviços armazenam os dados do usuário. E poderão oferecer serviços personalizáveis, algo que já ocorre nas propagandas direcionadas presentes nas redes sociais. Para ele, existe saída, mas é preciso aprender outros modos de vida a fim de permitir uma comunicação educativa capaz de compreender que a pobreza não está sendo erradicada devido à virtualização monetária. De acordo com Pedro, é preciso estabelecer limites quanto antes.

O avanço da pobreza e do controle político-tecnológico, segundo o coordenador executivo do Intevozes, precisa ser erradicado. O dinheiro, os cheques e as criptomoedas podem até desaparecer com o advento de novas ferramentas, mas a pobreza permanecerá se persistir uma mentalidade somente tecnológica. A pobreza é um problema, sobretudo. Afinal, de acordo com Pedro, crescimento econômico precisa vir acompanhado de justiça social.

*Texto publicado na editoria de crônicas do Laboratório, na qual nossos repórteres têm liberdade para desenvolver textos com caráter subjetivo e opinativo.

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