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‘Realidades Adaptadas’: o Ser Humano de Aço e Osso

A filosofia não é a única a questionar o verdadeiro sentido de “ser” humano e seus limites, a ficção científica também o faz de maneira assombrosa

Por Yasmin Teixeira (yasminteixeirasilva@usp.br)

Um universo de questionamentos que colocam a prova a humanidade, a tecnologia, e o verdadeiro limite do ser humano: essa é a melhor definição do que o leitor pode encontrar em Realidades Adaptadas (Editora Aleph, 2020). Trata-se de uma coletânea de contos — produzidos por volta dos anos de 1950, 70 — fontes de inspiração para grandes sucessos de bilheteria. Eles foram escritos por um dos nomes mais importantes do gênero da ficção científica: Philip K. Dick, responsável por uma verdadeira revolução dentro da indústria literária. 

O livro é composto por um total de sete contos que, com originalidade e criticidade, abordam diferentes temas, variando desde a verdadeira essência do ser humano até críticas corajosas a governos totalitários. Munido de personagens melancólicos e até um pouco inconformados, o escritor consegue criar cenários desconfortáveis, apesar de estranhamente familiares.

Todos os contos se passam em realidades profundamente tecnológicas, grande parte durante algum período pós-guerra. Foi por meio dessa escolha de cenários que se percebe a intenção do autor em criticar não apenas a situação !homem contra máquina”, mas também a utilização de tecnologias como armas de guerra e, principalmente, a instabilidade do aparente domínio humano. 

A questão da humanidade

Em grande parte dos contos de Philip, a humanidade se confunde com a tecnologia a um ponto em que os personagens não sabem distinguir uma pessoa de uma máquina. Assim, o autor se aproveita para questionar realmente quais são os limites da humanidade e, principalmente, o que seria “ser” humano. 

Entretanto, o escritor deu um passo à frente no quesito roteiro e buscou visualizar não só um mundo onde a tecnologia se confunde com a humanidade, mas também um em que ela se desprende do ser humano e passa a se auto comandar — o que é uma grande característica da nova ficção científica. Philip despejou toda essa desconfiança no conto A Segunda Variedade, expondo um Estados Unidos mergulhado em uma guerra contra a União Soviética — referência à Guerra Fria —, no qual a tecnologia foi altamente utilizada como arma. No decorrer do conto, também testemunhamos as próprias armas assumindo aparência humana e atacando seus próprios criadores. 

“Neste conto, meu tema principal – ‘Quem é humano e o que aparenta ser (simulacro) humano?’ – emerge de forma mais sublime (…) Se não a respondermos adequadamente, não poderemos ter certeza sobre nossa própria natureza.” 
Phillip K. Dick, sobre o conto A Segunda Variedade

Talvez, se Philip pudesse ver a progressão do desenvolvimento das famosas Inteligências Artificiais, ainda concordaria que sua questão não foi respondida. Porém, isso mostra como esses contos são distópicos, mas, ainda assim, visionários ao apresentarem a evolução da relação entre ser humano e a tecnologia. 

A relação entre a ficção científica e a política 

É notável a percepção política que Philip adicionava em seus contos, nunca isolando totalmente a ficção de realidades sociais verdadeiras, o que dava um caráter muito verídico a sua escrita. Essa abordagem é profundamente construída em O Relatório Minoritário, no qual o escritor  apresenta uma sociedade em que o Estado prende possíveis criminosos antes mesmo dos crimes ocorrerem. A decisão é feita por três videntes que nem sempre concordam sobre as resoluções, entretanto, a previsão majoritária permanece.

Você não sabe como é estar preso entre dois poderes implacáveis, um peão entre o poder político e o econômico. E estou cansado de ser um joguete.”

A partir daí, Philip constrói um verdadeiro cenário de golpe de Estado, em que o exército, sentindo-se excluído do esquema de poder, procura provar que o sistema de prisão prévia é falho. Assim começa um  levante contra o governo. Com uma crítica a governos totalitários, aos exércitos golpistas e ambiciosos e até ao pré-julgamento de pessoas como criminosas, o autor consegue unir diversas questões com a clássica ação presente na ficção científica e ainda construir uma boa crítica ao status quo em 1956.

A evolução humana e o determinismo biológico 

Além de todo o aspecto progressista, vê-se que uma preocupação assolava a mente de Philip: a evolução humana. Em contos como A Segunda Variedade e O Homem Dourado, ele cita a possibilidade de substituição da raça humana tanto por máquinas quanto por novas espécies. O segundo caso, especificamente em O Homem Dourado, ocorre quando a população é constantemente perturbada por novas espécies de seres com poderes específicos — que terminam caçados, estudados e mortos. 

No entanto, isso muda ao encontrarem uma estranha espécie, um homem dourado, impossível de ser morto ou contido, o que causa um verdadeiro pandemônio ao fazê-los acreditar que finalmente “a próxima espécie” teria surgido para substituí-los. Tal ideia é arcaica e biologicamente errada ao afirmar que existem espécies melhores ou piores e, principalmente, por considerar uma “troca” de domínio sobre o mundo, que simplesmente é ilógica, além de ultrapassada, mas considerável devido ao período em que foi escrita. 

Vale citar que, ainda em O Homem Dourado, há uma característica notável e bastante comum na ficção científica: a misoginia. Também em outros contos, Philip mostra uma visão instrumental e extremamente estereotipada do gênero feminino, garantindo o destaque ao protagonista que, surpreendentemente ou não, sempre foi do gênero masculino.

Por fim, apesar de elementos anacrônicos, Realidades Adaptadas encontra-se no hall dos clássicos de qualquer amante de ficção científica. Por meio de suas percepções futuristas — um tanto pessimistas — e escrita enérgica, o autor lança um aviso para a sociedade. Agora, cabe a ela decidir entre a inércia ou a adaptação à realidade.

*Imagem de capa: Acervo Pessoal/Yasmin Teixeira 

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