Nesta sexta-feira (06) ocorreu o último dia da 1ª Mostra de Mulheres e Cinema, promovida pelo coletivo Resistir com Arte. Antes mesmo de o evento começar, a música ambiente já dava uma prévia do que estava por vir: tocava o álbum A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares – mulher negra e protagonista de sua obra. Nada mais adequado para antecipar o debate que estava por vir, sobre o protagonismo da mulher negra no audiovisual.
De início, foi exibido o curta-metragem À meia vista, de Priscila Oliveira. O filme conta a história de uma senhora, que trabalha como costureira em sua casa e tem um ambiente familiar conturbado. Essas relações interpessoais sem profundidade são objeto de questionamento no curta, que, além disso, busca mostrar a possibilidade de mudança no olhar da personagem – é possível voltar a se enxergar enquanto mulher e, assim, se reconectar a si mesma.
Depois, em O dia de Jerusa, Viviane Ferreira constrói uma narrativa que traz questionamentos sociais a todo o momento. O elenco é totalmente formado por pessoas negras, e assuntos como assédio, solidão e necessidade financeira são tratados com destreza. O filme é sensível ao mostrar também a cumplicidade que se constrói entre as duas principais personagens ao longo da narrativa.
Por fim, é apresentado o episódio Criola do projeto Empoderadas. Trata-se da história da grafiteira e artista urbana Criola, que fala no vídeo sobre suas inspirações e empoderamento. Ela conta que vê o grafite como um ato político, pintando mulheres negras nas ruas, resgatando sua ancestralidade e se posicionando frente à sociedade. “Meu corpo está em um lugar público, mas ele não é público”, diz.
Redes de fortalecimento
O debate foi mediado por Fernanda Lomba, produtora executiva na Encouraçado Filmes. Participaram da mesa Jéssica Moreira, do coletivo Nós, mulheres da periferia; Carol Rodrigues, do Empoderadas; Joyce Prado, representando o curta O dia de Jerusa; Priscila Oliveira, diretora de À Meia Vista.
Joyce começou falando sobre o cenário atual da produção audiovisual, muito menos elitista do que era há 10 anos. As novas mídias e os avanços da tecnologia possibilitaram uma produção mais eficiente na área – o material utilizado tem maior qualidade, com um custo mais acessível. Tudo isso, segundo Joyce, está sendo refletido nas telas, sendo significativo para aumentar o número de realizadores negros, periféricos e de outras regiões do Brasil.
Priscila, nesse sentido, explica que seu curta teve um orçamento muito restrito e só se materializou devido ao trabalho colaborativo que é comum no universo audiovisual atualmente. Foi assim que conseguiu uma pessoa que trabalhasse com fotografia, outra com áudio – formando, assim, uma equipe. “Acho que a gente caminha melhor quando caminha juntas”, complementou Carol.
Trazendo a conversa para uma perspectiva histórica e buscando certa ancestralidade, Jéssica comentou que essas trocas de conhecimento e equipamentos são nada mais que uma forma de colaboração coletiva, resultado “de trocas que as nossas mãe faziam lá atrás, nas outras décadas, quando elas precisavam deixar o filho com a vizinha para ir trabalhar”.
Protagonismo negro e estereótipos
Jéssica, explicou que o Nós, mulheres da periferia está agora desenvolvendo um documentário pela primeira vez. Jornalista de formação, acredita que as áreas têm a narrativa como base comum. As novas mídias representam a chance de mostrar narrativas que ainda não foram contadas, reconhecendo a história de mulheres e homens negros – construindo, assim, uma nova memória nacional. “Nós, na periferia, não temos ainda salas de cinema a rodo para a gente ir ao cinema quando bem entender. (…) Como eu posso falar de audiovisual na periferia, para as meninas pretas, se ainda não tem nem sala de cinema? Então quando eu vejo as produções das nossas manas negras, eu acho que para além da representatividade, tem um processo aqui de reparo histórico mesmo”, disse.
Colocando em pauta o protagonismo negro, Fernanda perguntou à Priscila sobre a ausência de pessoas negras em seu curta, o que o direcionou o debate para a questão do estereótipo. A partir disso, falou-se sobre a importância de expor a profundidade desses personagens que são reduzidos a clichês – mostrar que aquela que é frequentemente representada como empregada doméstica tem anseios, desejos. “É uma personagem rasa porque ela cumpre um papel social, e não porque ela tem uma subjetividade”, disse Joyce. Assim, a diversidade atrás das câmeras é o necessário para fugir dessa construção preconceituosa. “Quando você é feminista negra periférica, você é militante. Então, mesmo que traga mulheres brancas como protagonista, como foi o caso da Priscila, a gente tem o olhar de uma mulher negra impresso nessa obra”, disse Jéssica.
Da plateia, surgiram elogios ao fato de O dia de Jerusa simbolizar uma quebra de arquétipo, a medida que representa uma senhora negra que não está necessariamente em uma classe baixa. Em resposta, Joyce complementa que é preciso “criar uma personagem que não esteja em função da nossa narrativa, mas esteja a serviço da representação de diferentes perfis sociais e diferentes perfis de pessoas”. Além disso, ainda sobre o curta, uma pessoa da plateia traz à discussão a cena em que uma das mulheres do filme é assediada. A respeito disso, Joyce diz que “isso é uma denúncia dentro do que a gente vive”. Os primeiros assédios sofridos por mulheres negras são dentro dos seus ambientes familiares e são cometidos por homens negros, o que ela chama de “trauma geracional”, pois acontece com avós, mães e filhas. “Isso é mostrado no filme de forma gritante, para que talvez sirva de reflexão”, disse.
Para as considerações finais, Carol sinalizou a importância de pensar novas linguagens, diferentes formatos. Joyce, por sua vez, falou sobre como este é um momento de “disputa de narrativas” em todas as formas de mídia – tudo o que já foi mostrado está sendo questionado e há a possibilidade de promover uma realidade mais plural, com a presença de novos perfis de realizadores nesses espaços. Fernanda, enquanto mediadora, finalizou com uma reflexão acerca do tema central da mostra: “É isso que eu acho que é essencialmente cinema feito por mulheres: esse olhar, esse respeito, essas escolhas.”
Por Laila Mouallen
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