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‘Sally Cinco’: fragmentos de uma mente em busca de completude

Daniel Kayes retrata o Transtorno Dissociativo de Identidade de maneira empática, mas o olhar masculino limita o potencial obra
Colagem com imagem da capa de Sally Cinco e figuras de rosto feminino
Por Gabriella dos Santos (gabriella.santos12@usp.br)

Você já imaginou viver sem saber se esteve presente em todas as horas do seu dia? Ou com a sensação de que outra pessoa viveu por você? Esse é o dilema de Sally Porter, protagonista de Sally Cinco, romance de Daniel Keyes, o mesmo autor de Flores para Algernon (1966).

Baseada em casos reais, a obra nos convida a mergulhar na mente de uma mulher que sofre com Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), doença psíquica caracterizada por 2 ou mais estados de personalidade que se alternam. O paciente apresenta incapacidade de recordar eventos diários, informações pessoais importantes ou eventos traumáticos, que não seriam esquecidos normalmente. Sally não tem consciência de sua condição: para ela, há “outras forças ou pessoas que vivem dentro dela e fazem coisas pelas quais ela não é culpada”. A partir dessa percepção fragmentada, acompanhamos sua trajetória de sofrimento, descoberta e tentativa de reconstrução.

Publicado em 1980 nos Estados Unidos e traduzido para o português pela editora Aleph, o livro mantém a consistência narrativa e emocional característica de Keyes. Dividida em quatro partes, a história é narrada por Derry, uma das cinco identidades de Sally, e a única consciente da existência das demais.

Uma vida em pedaços

Sally Porter é uma garçonete de 29 anos, solitária e marcada por uma vida de abusos. Assim como em aproximadamente 90% dos casos de TDI, sua condição surge como mecanismo de defesa contra traumas que sofreu na infância. Abandonada pelo pai, ela cresce sob os cuidados de uma mãe e um padrasto narcisistas, que a submetem a espancamentos e abusos físicos e psicológicos – agravados pelas ações de suas personalidades alternativas, as quais Sally desconhece.

Aos 18 anos, ela se casa com um namorado da escola, mas continua a ser vítima: o marido, Larry, a oferece sexualmente a colegas de trabalho em troca de favores e promoções.

Recém-divorciada e afastada dos filhos à força, Sally passa a viver sozinha, assombrada pelos apagões que ocorrem quando uma de suas personalidades assume o controle. A protagonista enfrenta desafios cada vez mais difíceis e, neste processo de sofrimento, ela conhece o psicólogo Dr. Roger Ash, um homem marcado pela morte da esposa. Ao se deparar com o transtorno de Sally, ele vê não apenas um desafio clínico, mas também a oportunidade de redenção e avanço profissional. Usando hipnose, ele trabalha para integrar as personalidades fragmentadas, ajudando Sally a se tornar “completa” novamente.

“Eu sempre trancava a porta para que ninguém roubasse meu dinheiro ou minhas coisas, mas nunca me dei conta de que o tempo todo havia alguém roubando horas e dias da minha vida” 

Sally Cinco, p. 341

Cinco personalidades, uma só mulher

Cada identidade representa um aspecto da psique da protagonista e carrega personalidades, vozes, e até aparências distintas. 

Derry, a narradora, atua como uma observadora (e, às vezes, mediadora entre a Sally e suas demais identidades) onipresente na mente de Sally. Ela conhece os segredos das outras personalidades, mas não pode interferir diretamente nos conflitos que assolam cada uma em particular. É uma mulher alegre, apaixonada e que sonha em tornar-se completa para viajar o mundo.

Nola, a mais culta e introspectiva, é uma artista melancólica, possivelmente cleptomaníaca, que odeia sua existência fragmentada. Para ela, os breves momentos de controle diário são insuficientes; a morte parece a única saída para a liberdade verdadeira. Fascinada por ciência e literatura, Nola acredita que o TDI seja uma mutação causada por radiações atômicas e que, no futuro, as pessoas com múltiplas identidades alcançarão um novo estágio evolutivo, o Homo sapiens multiplus.

“A fragmentação pode ser a onda do futuro em vez de um defeito”

Sally Cinco p. 124

Jinx é a mais agressiva e forte, uma “psicopata” interna que emerge em situações de perigo iminente. Quando o padrasto ou a mãe de Sally a agrediam, ou quando um estuprador ameaçava, Jinx assumia o controle para lidar com as consequências, protegendo a protagonista. Esse papel a transformou em um ser destrutivo e, ao mesmo tempo, destruído.

Bella, aspirante a artista e cantora, traz um contraste sedutor e sexualmente ativo. Diferente da Sally, que prefere passar despercebida, Bella sonha em se tornar uma estrela de cinema ou dançarina, mas anseia pela integração para realizar esses desejos como uma mulher completa.

Acima de tudo, o interesse das identidades de Sally é o mesmo: serem completas, cada uma com seu propósito particular. Todas querem apenas mais alguns minutos para viver antes que a finitude da vida as encontre por meio da integração. 

O arco narrativo da integração poderia ser mais desenvolvido. Numa escrita quase apressada, o autor deixa de explorar alguns conflitos internos que poderiam oferecer mais complexidade e emoção para a história. Alguns comportamentos das identidades no terceiro ato, especialmente de Jinx, parecem pouco coerentes com a construção meticulosa ao longo da obra. 

Limites da narrativa

Apesar de um primoroso trabalho de pesquisa sobre o transtorno de Sally, a obra de  Daniel Keyes não escapa de críticas. Em alguns trechos, a narrativa é atravessada por elementos misóginos. Cenas de violência sexual, desnecessárias para o enredo, parecem ter sido inseridas por puro sadismo, reforçando estereótipos machistas.

Outro ponto relevante é a forma como Sally é fetichizada pelos personagens masculinos ao longo da trama. Nenhum dos homens parece interessado nela como um todo: Todd se apaixona por Derry, que trabalha no turno da noite no bar; Eddie se encanta por Bella, a persona sedutora, e o Dr. Ash se fascina com o diagnóstico da protagonista. Quando as personalidades se integram, todos perdem o interesse, um reflexo simbólico da dificuldade de aceitar uma mulher completa, complexa e autônoma.

Sally Cinco é uma leitura intensa e incômoda, mas humana. Com sensibilidade e tensão psicológica, Daniel Keyes constrói uma protagonista despedaçada, mas em busca de se fazer completa. Apesar de alguns excessos narrativos e da presença de um olhar masculino muitas vezes limitado, a obra continua sendo uma reflexão poderosa sobre trauma, identidade e a luta por reconstruir o próprio eu.

“Mas é isso que significa ser uma pessoa por inteiro. não é só risada e bons momentos. são emoções conflitantes, responsabilidades e sentimentos profundos, altos e baixos”

Sally Cinco, p. 271

*Imagem de capa: Arquivo Pessoal/Gabriella dos Santos

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