Por Johnny Taira e Karina Tarasiuk
johnny.taira@usp.br e karinatarasiuk@usp.br
No dia 1 de maio, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) negou o recurso de Caster Semenya contra a Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF). Por conta disso, ela não poderá competir nas provas de corrida com distância entre 400 m e 1,5 km enquanto não for submetida a tratamentos de redução hormonal.
Duas vezes ouro olímpico na prova de 800 m, Semenya é atleta intersexual e possui altos índices de testosterona em seu corpo. O TAS declara que a deliberação visa manter a competitividade nas modalidades femininas do esporte, enquanto os argumentos levantados a favor de Semenya apontam irregularidades na metodologia aplicada pela IAAF e consideram as normas discriminatórias.
A Jornalismo Júnior buscou entender quais são os pontos de controvérsia nas regras criadas pela IAAF, entrevistando Bárbara Pires, doutoranda em Antropologia Social pela UFRJ, Manuella Donato e Débora Vasconcellos, ambas doutorandas em Sociologia pela UFPE e integrantes do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Poder e Cultura em Gênero e Sexualidade pela mesma universidade.
Afinal de contas, o que é a intersexualidade?
Há diversas manifestações da intersexualidade no corpo humano. Uma delas se dá pela genitália ambígua – identificada logo após o nascimento – e também há possibilidade de ser apresentada durante a trajetória de vida. Nesse último caso, o qual inclui Semenya, existe o desenvolvimento de características secundárias contrárias ao sexo identificado no momento do nascimento. “Ela pode se expressar através dos cromossomos, das glândulas sexuais ou dos hormônios”, complementa Débora Vasconcellos.
Por apresentarem características que vão além dos estereótipos de gênero, pessoas intersexuais são vistas com um olhar preconceituoso. Débora Vasconcellos explica que na atual lógica cisgênero a “intersexualidade é vista como algo que precisa ser normalizado, regulado e enquadrado em uma dessas caixinhas: homem ou mulher, macho ou fêmea”. Manuella Donato entende que a sociedade “é muito marcada pelos padrões de gênero”, trazendo como consequência o fato de que “pessoas intersexuais tendem a ser invisibilizadas, tratadas como inexistentes, inadequadas, patológicas, que precisam ser corrigidas para estar dentro do padrão de gênero”.
Testosterona: a vantagem é real?
O estudo que baseou a regulamentação da IAAF em 2018 mede a performance de atletas de elite, relacionando-as com o nível de testosterona no corpo. Foi com base nessa pesquisa que atletas como Caster Semenya passaram a ser impedidas de competir em provas de atletismo. Contudo, o artigo causou controvérsia desde sua publicação. “Existem diversas falhas metodológicas”, afirma Bárbara Pires, citando uma outra pesquisa a qual refuta a encomendada pela IAAF. “Houve a descoberta de tempos duplicados, tempos fantasmas e dados de atletas dopadas.”
A utilização desses dados, segundo Pires, contamina a amostragem. A testosterona produzida naturalmente pelo corpo – endógena – é diferente da exógena, aplicada em casos de doping, por serem composições químicas e biossínteses distintas. Assim, Bárbara Pires afirma não existirem indícios concretos da real vantagem no maior nível de testosterona endógena no desempenho das atletas de corrida. “Não há estudos no esporte entre atletas com e sem variações intersexuais em determinada modalidade de forma a examinar o impacto da testosterona endógena no rendimento esportivo”, explica Pires.
Caster Semenya, por exemplo, não é detentora do recorde mundial em sua especialidade (prova de 800 m). Além disso, Dutee Chand, atleta intersexual indiana forçada a passar por procedimentos de redução hormonal, não está nem entre os 25 melhores tempos obtidos nos 100 m.
“Nosso corpo é um sistema em equilíbrio”
Além de não haver comprovação da testosterona endógena trazer vantagem em atletas, a diminuição do nível desse tipo de hormônio não é um procedimento tão simples ou seguro quanto se parece. “Não dá para diminuir a testosterona só com pílula anticoncepcional como a IAAF dá a entender, mas mesmo esse uso é arriscado para algumas mulheres devido aos efeitos colaterais”, alerta Bárbara Pires. Ela explica que, dependendo da quantidade presente no organismo, é necessária a utilização de bloqueadores hormonais. Neste caso, o tratamento suprime, por exemplo, o desenvolvimento de características secundárias consequentes do alto nível de testosterona.
Como cada corpo reage de forma diferente com a mudança nos níveis de testosterona, é difícil prever o que pode acontecer se Caster Semenya for submetida a procedimentos de redução hormonal. No entanto, é possível comparar com situações de menopausa ou andropausa, segundo Bárbara Pires. “Os hormônios esteroides diminuem no corpo e causam desequilíbrios metabólicos, diminuição da densidade óssea, entre outros sintomas.” Pires constata, ainda, que o corpo humano é um sistema em equilíbrio, isto é, existem mecanismos de resposta para dar conta de variações e perdas existentes.
Pelo fato de as intervenções no nível hormonal trazerem tantos impactos e efeitos colaterais, Bárbara Pires entende que “é problemático, até antiético, uma instituição de nível internacional forçar que atletas tomem medicamentos sem necessidade clínica para garantirem elegibilidade esportiva”. Além disso, a própria Associação Médica Mundial (WMA, em inglês) não recomenda a implementação de procedimentos impostos pela IAAF.
“Há anos Semenya vem sendo questionada, submetida a testes, a processos invasivos no ponto de vista físico, psicológico e moral”, comenta Manuella Donato, que considera ser necessário pensar nos limites éticos de impor a pessoas intersexuais a decisão de alterar seus hormônios. “Isso representa uma violação do próprio direito de autodeterminação corporal.”
Intersexualidade, questões de gênero e igualdade de oportunidades
As modalidades femininas sempre foram alvo de controle dentro do esporte, por meio de alegações a favor da proteção às mulheres. “Essa fiscalização se dá pela sociedade machista que já observa as mulheres no sentido de controle, principalmente de seus corpos”, constata Débora Vasconcellos.
A maior fiscalização de corpos femininos no esporte possibilitou a submissão das atletas a situações degradantes e invasivas. Vasconcellos afirma: “Até 1968, as atletas que competiam nas Olimpíadas eram convidadas a desfilar nuas diante de um corpo de examinadores para avaliarem se eram ‘mulheres de verdade’.” Bárbara Pires também entende que o esporte feminino sempre foi regulado, através de diversos métodos restritivos que, em sua visão, “foram aplicados mais por receios do que por necessidade”.
Em relação ao veredicto do TAS contra a participação de Caster Semenya em provas de atletismo, Manuella Donato questiona: “quais mulheres essa decisão está tentando proteger?”. Sendo assim, Donato conclui que a decisão do TAS seja problemática porque “parece afirmar que gênero é algo que pode ser mensurado e reforça fronteiras muito estáticas do que significa ser homem e mulher”.
Esse debate retoma o preconceito social dirigido aos intersexuais, os quais, segundo Donato, tendem a ser invisibilizados, tratados como inexistentes e julgados por não se adequarem ao padrão de gênero – masculino ou feminino. Tal padrão, de acordo com Débora Vasconcellos, questiona a feminilidade de mulheres como Semenya, que, embora não se entendam como pertencentes ao gênero masculino, são sujeitas a avaliações estereotipadas e visões como se fossem.
Vasconcellos também contesta o Tribunal, sobretudo por Semenya não ter escolhido suas características intersexuais. “Trata-se de como ela nasceu, de como o corpo dela se expressa e sim, a intersexualidade é uma das expressões possíveis do corpo humano.” Além disso, Vasconcellos questiona o porquê de o TAS somente aplicar normas de controle em determinados aspectos, ignorando, por exemplo, outras diferenças biológicas e principalmente abismos de investimento entre países. “A competição mais justa será aquela que observará os corpos dentro de suas potencialidades e suas medidas, com países econômica e socialmente menos desiguais”, conclui.