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‘Sempre Vivemos no Castelo’: o medo da mudança e o conforto no isolamento

Último romance de Shirley Jackson é um delicioso e macabro passeio pela mente de uma pária social

“Eu pensava em Charles. Poderia transformá-lo em mosquito e jogá-lo numa teia de aranha e vê-lo enredado e indefeso e se debatendo, preso no corpo de um mosquito agonizante; poderia desejar sua morte até que ele morresse. Poderia amarrá-lo a uma árvore e deixá-lo lá até que virasse tronco e a casca cobrisse sua boca. Poderia enterrá-lo na cova onde minha caixa de moedas de prata estivera segura até ele chegar; se estivesse debaixo da terra eu poderia andar sobre ele pisando forte.”

Trecho de Sempre Vivemos no Castelo

Existe um conforto na rotina. Em saber exatamente o que se deve fazer a cada momento do dia. Para Mary Katherine Blackwood, não há nada melhor do que a rotina. Ela vive com sua irmã mais velha Constance, que a chama carinhosamente de Merricat, e seu tio Julian em uma mansão, grande demais para os três, nos arredores de uma cidadezinha. Todas as terças e sextas-feiras ela vai ao vilarejo fazer compras para sua irmã, que não sai de casa há seis anos, e para seu tio, que já apresenta sinais de demência. Às segundas-feiras, elas limpam a casa. Nos momentos livres, Mary vai ao riacho nos arredores da propriedade de sua família com seu gato Jonas. Há paz nessa rotina. Todo o resto de sua família morreu envenenada e o vilarejo os odeia, mas isso são “apenas detalhes”. Enquanto ela conseguir manter tudo do jeito que está, “tudo estará bem”.

Inquietante, essa é a história de Sempre Vivemos no Castelo (Companhia das Letras, 2017), último romance de Shirley Jackson, publicado originalmente em 1962 e traduzido, nesta edição, por Débora Landsberg. Uma das maiores escritoras de terror psicológico de todos os tempos, Shirley morreu precocemente apenas três anos após o lançamento do livro, mas deixou seu legado no gênero, influenciando nomes como Stephen King e Neil Gaiman. Ela teve seu nome de volta aos holofotes em 2018, com o lançamento de A Maldição da Residência Hill (Netflix, 2018), série baseada em seu penúltimo e mais famoso romance, A Assombração da Casa da Colina (Editora Suma, 2018).

Muito antes da série, A Assombração já havia sido adaptado para um filme, Desafio do Além (The Haunting, 1963), hoje considerado um clássico cult. [Imagem: Divulgação/ MGM]

Com esse currículo, não é surpresa que Sempre Vivemos no Castelo seja delicioso. Apesar da história aparentemente parada, o modo como Shirley escreve pequenos detalhes e pensamentos da protagonista faz com que o leitor não consiga parar de ler. A história se passa mais na cabeça de Mary do que na realidade, sendo um verdadeiro terror psicológico, e isso é ótimo. É em sua mente que se constrói o suspense: em cada pensamento de raiva quando deveria haver compaixão e em cada exclamação de alegria frente a acontecimentos que deveriam gerar tristeza. Toda a estranheza e as tendências homicidas de Merricat, além de sua obsessão por sua irmã e sua casa, despertam pura curiosidade em quem lê. Assim, quando o principal conflito do livro tem início – a visita inesperada de Charles Blackwood, primo distante da família, – é impossível para o leitor não odiá-lo imediatamente, assim como Mary. Afinal, ele está perturbando sua preciosa rotina.

Além do suspense, o livro tem um humor macabro que diverte ao mesmo tempo em que torna toda a situação ainda mais tensa. Alternando entre a graça e o terror, Shirley Jackson desenvolve períodos longos com maestria ao mesmo tempo em que sabe usar períodos curtos nos momentos certos para gerar o impacto necessário. É possível perceber isso logo no primeiro parágrafo, quando Merricat, após contar uma série de curiosidades triviais sobre Constance e tio Julian, lembra de um pequeno detalhe: todo o resto de sua família morreu. Ela rapidamente esquece o tópico e o leitor é deixado para descobrir aos poucos o que realmente aconteceu. Esse é outro ponto positivo do romance: o modo como ele revela cuidadosamente seus segredos.

Shirley Jackson também inspirou um filme próprio, Shirley (2020). Apesar de contar com elementos ficcionais, o longa narra um real momento conturbado no casamento da escritora e foca em suas questões com a depressão e a agorafobia. [Imagem: Divulgação/NEON]

Sempre Vivemos no Castelo se sustenta em dois pilares: na relação obsessiva entre as duas irmãs e na relação de ambas com o vilarejo do qual são vizinhas. Serem as párias da cidade não parece afetá-las tanto quanto deveria. Elas têm uma a outra e isso é o necessário. O isolamento se torna, assim, justificado em suas cabeças. Para manter essa existência idílica, elas, que já são odiadas, fazem questão de se enclausurar ainda mais em seu casulo conjunto.

É inevitável pensar nos aspectos de classe que permeiam esse ódio da população a elas. Herdeiras da família mais rica da cidade, que sempre buscou se isolar em seu castelo, elas herdaram também o ódio de classe direcionado a eles, intensificado ainda mais pelos rumores sobre a morte de seus parentes e o simples fato de serem mulheres. Permeando tudo isso, existe a atemporalidade do romance. Em nenhum momento há alguma indicação do tempo em que acontece a história. Se não tivesse sido escrita em 1962, seria possível até pensar que se passa atualmente, mesmo sem a presença de celulares.

“Acordei numa manhã de sábado e pensei ouvi-los me chamando; eles querem que eu me levante, pensei antes de despertar de vez e lembrar que estavam mortos”

Trecho de Sempre Vivemos no Castelo

Sempre Vivemos no Castelo é uma história sobre o medo da mudança e o conforto no isolamento. Shirley Jackson prende Constance e Merricat em um castelo e, com sua escrita, prende também o leitor nessa jornada. A fama de Shirley não é por acaso.

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